Homens que mudaram a Pérsia
Ruhollah Mussawi Khomeini mudou o Irão e o século XX quando, há 20 anos, fez cair o Xá da Pérsia e ofereceu ao mundo a primeira República Islâmica. Na revolução que deixou indeléveis marcas no Médio Oriente, o velho teólogo de Qom permanece o símbolo maior. Mas não o único. Se o plebeu e analfabeto Reza Khan não tivesse destronado o nobre e culto rei Ahmad, em 1921, e se a CIA não tivesse derrubado o laico Mossadegh, em 1953, teria o Grande Ayatollah regressado triunfante a Teerão em 1979?
Talvez seja um exagero, mas as sementes da revolução de Khomeini poderão ter sido lançadas em 21 de Fevereiro de 1921, quando um golpe de Estado apoiado pelos britânicos acabou com 147 anos de dinastia dos Qajar. Ahmad, o último Xá desta tribo turca que ajudou a unir o Irão dos Safávidas, foi derrubado por Reza Khan (ou "Senhor Reza"), um antigo oficial dos Cossacos Reais Persas. Ahmad era nobre e culto mas medroso. Reza era plebeu e analfabeto mas corajoso. Não tinha amigos nem confidentes, apenas ambição e carisma. Foi em 1920, quando os russos cobiçavam as províncias iranianas em guerra civil, que o emissário inglês Edmund Ironside escolheu Reza Khan para neutralizar Ahmad. A sua ascensão foi meteórica: de ajudante de campo a general, chefe das forças armadas, ministro da guerra, primeiro-ministro e finalmente, imperador. Em 1926 sentou-se no Trono do Pavão e proclamou-se Reza Xá Pahlavi. A seu lado estava o filho de seis anos Shapour Mohamed Reza, o primeiro herdeiro da nova dinastia. O rei mostrou desde logo que queria progresso e, para ele, progresso era uma sociedade secular de estilo ocidental, com obras que pudessem ser vistas e tocadas: edifícios, estradas, caminhos-de-ferro, escolas, fábricas, casinos e hotéis. O que mais impressionou os ocidentais foi a sua "ordem de emancipação das mulheres", embora fosse mais aparente do que real. É verdade que, sob a ameaça de multas, restaurantes e cinemas eram obrigados a aceitar a convivência dos dois sexos. Que, após a proibição do véu islâmico, os "chadors" (túnicas) eram cortados em plena rua à tesourada. Mas o Xá nunca deu às mulheres o direito de voto ou de se candidatarem a cargos públicos, de se divorciarem dos maridos e manter a custódia dos filhos. E não facilitou o acesso às poucas áreas de estudo universitárias - ensino e enfermagem - que lhes estavam reservadas.Reza Xá estava, porém, determinado a impor a modernização. E só o podia fazer reduzindo a influência do bem organizado clero xiita. Pregadores descontentes podiam dos seus púlpitos organizar manifestações, greves e motins. Aliás, a revolução constitucional de 1906 começou no Bazar de Teerão, provocada pela detenção de um "mullah" que denunciara a tirania de um governo dos Qajar. Apesar de saber tudo isto, Reza Xá insistiu em aprovar legislação que retirava privilégios aos religiosos. E o ódio à monarquia começou a fermentar.Pahlavi venerava o rei aqueménida Dário, mas foi a admiração por Hitler que acabou por moldar o seu nacionalismo. Em 1935, inspirado pelo novo Reich alemão, decretou que a Pérsia se chamasse Irão, um nome que evocava os esplendores da raça ariana. Por esta altura, tornara-se ainda mais autoritário, exasperado com o humilhante acordo que assinara, em 1933, com os britânicos para a exploração do petróleo iraniano.O segredo ocultava uma grande parte do pacto com a Anglo-Iranian Oil Company (AIOC), mas havia um ponto que deixou os iranianos profundamente ressentidos: os ingleses, em troca de uma pequena taxa anual, só entregariam ao Irão 16 por cento dos lucros líquidos. Era um contrato válido por 60 anos que, embora permitisse ao Governo de Teerão inspeccionar e supervisonar as instalações e produção, lhe interditava a auditoria das contas. Em Junho de 1941, quando a Alemanha nazi invadiu a URSS, Reza Xá declarou-se neutral, mas Churchill e Estaline não confiaram na "neutralidade" de um simpatizante de Hitler para salvaguardar as rotas de abastecimento do petróleo do Golfo. Na madrugada de 25 de Agosto, os Aliados invadiram o Irão pelo norte e pelo sul esmagando o orgulhoso Exército iraniano. Em 16 de Setembro, numa tentativa desesperada de salvar os Pahlavi, o rei que os britânicos impuseram ao povo cedeu às pressões dos britânicos e abdicou a favor do seu filho. Morreu, de doença, em Joanesburgo, em 1944.Aos 22 anos, no mesmo dia 16 de Setembro de 1941 em que o seu pai abandonou o trono, Shapour Mohamed Reza tomou posse como Mohamed Reza Xá. Para mostrar aos Aliados a sua cooperação, o novo monarca restaurou o poder do parlamento e restituiu parcialmente as propriedades confiscadas que recebera como herança. Fez concessões aos religiosos, libertou presos políticos, autorizou o regresso dos exilados, legalizou o "chador" e reduziu impostos. A revista "Time" elogiou-o assim: "O início do seu reinado parece óptimo, mas como acabará ninguém sabe".Nos primeiros dez anos, o novo Xá governou de modo a sobreviver. Era um líder fraco, física e psicologicamente, o oposto da sua enérgica irmã géma Ashraf, que muito influenciou o seu regime. As mulheres, aliás, sempre dominaram este "playboy". Desde Fawzia, a irmã favorita do Rei Faruk do Egipto, que desposou numa matrimónio político em 1939 mas que ela abandonou em 1947; a Yvonne De Carlo, Genere Tierney e Silvana Mangano, romances fugazes; a Soraya Esfandiari, filha de um chefe tribal iraniano e de uma alemã, arrancada da cama com um ataque de tifo para ser enfiada num pesado vestido de noiva da Casa Dior em 1951 e depois repudida em 1958 por não ter filhos; até Farah Diba, a estudante de arquitectura de 21 anos com quem casou em 1959 e que proclamou imperatriz e regente do reino, em 1967, oferecendo-lhe uma coroa de 1480 gramas de esmeraldas, rubis, diamantes e pérolas da Van Cleef and Arpels.A coroação de Farah Diba foi mais uma humilhação a somar às muitas que ele infligiu ao clero xiita. A própria imperatriz haveria de ofender os sentimentos de um povo extremamente religioso quando patrocinou um festival de teatro em Teerão em que uma companhia brasileira praticava sexo em palco.O divórcio do Xá com o povo começou a tomar forma a 4 de Fevereiro de 1946 quando, de visita à Faculdade de Direito da capital, foi alvejado a tiro por um militante do partido comunista Tudeh. A partir daí, o Xá, que sobrevivera, aos 7 anos, a um ataque de malária, atribuiu a sua salvação à protecção divina e raramente se misturava com os súbditos. Em 1950, pediu ajuda aos americanos para formar o seu próprio exército, mas nem isso lhe deu estabilidade política. Foi nesta altura que apareceu Mohamed Mossadegh, o magnético deputado descendente de um rei Qajar, que mobilizou as massas contra o vexatório acordo assinado pelo primeiro rei Pahlavi com a Anglo-Iranian Oil Company. Um acordo que permitia aos britânicos explorar petróleo e ficar com o grosso das receitas. A partir de 1951, o poder passou efectivamente das mãos do Xá para Mossadegh, agora já primeiro-ministro. Quando este nacionalizou o petróleo e, em 1953, expulsou o rei do país, o chefe da CIA, Allen Dules, encorajado pela intriguista gémea Ashraf, achou que tinha chegado o momento de afastar o laico nacionalista que desafiara a monarquia. A CIA deu o golpe que levou Mossadegh para a prisão e o vacilante Xá regressou do exílio em Roma para se tornar um líder autoritário. Assentou o seu poder num bloco composto pelos militares, pela polícia e pela temível SAVAK. Criada em 1957 e treinada pela CIA e pela Mossad, a SAVAK era o acrónimo farsi para Sazman-e-Ettelaat va Amniyat-e-Keshvar, ou Organização para a Espionagem e Segurança do País.Em 1963, respondendo aos apelos dos aliados americanos para alargar a sua base popular, o Xá tentou reformar a sociedade lançando uma "Revolução Branca". Mas não foi bem sucedido. Hostilizou sobretudo o clero xiita quando mexeu com os seus privilégios: a posse de vastas propriedades, a colecta de impostos religiosos, a administração de escolas e associações de caridade, a direcção dos tribunais islâmicos. O elemento fatal da "Revolução Branca" foi a reforma agrária, que acabou por arrastar um décimo da população rural para a capital e outras cidades. Sem casa, emprego e assistência médica, foram estes milhões de deserdados que, em 1979, precipitaram a derrocada do regime. Perante a injustiça e a arrogância do imperador, os pobres, analfabetos e apolíticos viraram-se para os que pregavam a justiça com simplicidade: os "mullahs". Com a reforma agrária, o rei alienara também a velha aristocracia que viu a sua riqueza e estatuto diminuídos e a classe média que desdenhava dos planos imperiais como um expediente político para agradar aos americanos. O Xá ignorou-os a todos. Em 1978, incapaz de controlar sangrentos tumultos nas ruas de Teerão, o "rei dos reis" perguntava ao sociólogo Ehsan Naraghi o motivo da contestação. "Sois vós mesmo, Majestade! Há 15 anos, em 1962, quando se deslocou ao santuário de Qom, o senhor atacou abertamente os chefes religiosos e acusou-os de serem reaccionários por terem criticado a reforma agrária [...]. Fostes tão violento, até mesmo injurioso, que o director da televisão estatal teve de censurar as vossas palavras..."A partir daí, recordou Naraghi, para rejeitar a acusação de reaccionários, os religiosos tiveram de provar que não estavam agarrados a uma ordem social arcaica e que eram mais revolucionários do que o rei. Foi em Qom que o Ayatollah Khomeini pôs em marcha o conceito de "Velayt-e-Faqhi", ou governo do jurista. Com ele chegou ao fim a dictomia de poderes temporal e religioso que existia desde o século XV, quando o Xá Ismail I fundou a dinastia safávida com base no islão xiita.(Amanhã: Mossadegh e Khomeini)