À volta dos quartos de Garrett

Três dias, muitas dezenas de comunicações. O Colóquio Internacional "Garrett: um Romântico, um Moderno" abriu várias pistas, mais do que teses, sobre a obra do autor de "Frei Luís de Sousa". A "história não acabou, quase se pode dizer que ainda agora começa", como o escritor escreveu nas "Viagens da Minha Terra".

Os organizadores do Colóquio Internacional "Garrett: um Romântico, um Moderno", que ontem terminou em Coimbra, entenderam - como de resto os editores escreveram no prólogo à primeira edição de "As Viagens na Minha Terra" - "fazer um serviço às letras e à glória do seu país (...) para melhor se poder avaliar a variedade, a riqueza e a originalidade do seu estilo inimitável". Os editores tinham um nome: Almeida Garrett... Num primeiro balanço ao que se passou durante estes três dias em Coimbra pode dizer-se que uma parte dos objectivos enunciados foram alcançados: prestou-se um serviço às letras, a Garrett e avaliou-se a variedade e a riqueza da sua prosa bem como a originalidade do seu estilo. Mas ficou-se, também, com a clara sensação que este foi um primeiro passo para redescobrir Garrett. Uma viagem, por certo, fascinante. Longa, muito longa... Até porque como foi recordado, Portugal continua a ser "um país em viagem" (José Cardoso Pires dixit). Viajemos pois.Capítulo I - De como o autor de "Frei Luís de Sousa" pode ser lido à luz do seus companheiros da estrada romântica. Travam-se razões, perplexidades, aproximações.Que se tenha começado por viajar à roda do quarto romântico de Almeida Garrett, como aconteceu com a comunicação inaugural de Hélder Macedo, do King's College, de Londres, não é, em si mesmo mesmo, surpresa nenhuma. O que é surpreendente é que se tenha instalado um ambiente de perplexidade. Disse o ensaísta: "quanto mais leio Garrett, também menos sei o que seja o romantismo". Perplexidade tanto maior quanto Hélder Macedo confessou que não sabia se ao caracterizar Garrett como romântico "nos ajuda a ir mais fundo do que a superfície dos seus textos". Chegados aqui, várias foram as "razões" travadas: para aproximar Garrett mais de Pushkin do que de Byron (propôs Macedo); para, com paciência, ver como as "Viagens" e "Tristam Shandy", de Laurence Stern, podem, e devem, ser lidos à mesma luz. Disse Carlos Ceia, da Universidade Nova de Lisboa: "um romance deve esconder o melhor possível a génese da sua escrita". Ao limite: uma "história pode ser contada de múltiplas formas sem deixar de ser uma história". Ou para se constatar, mostrou Eduardo Lourenço, que embora eco de toda a tradição romântica, Garrett des-construiu-a. Disse o ensaísta: "o romantismo foi precisamente a tomada de consciência revolucionária de que o que é a literatura - vida imaginária em estado puro".Capítulo II Onde se falou do Garrett cidadão e de como pode ser um farol para a vida política contemporânea. Quantos deputados há em Portugal?Na abertura do congresso, o Presidente da República, Jorge Sampaio disse: "Percorrer a produção doutrinária, política e autobiográfica de Garrett é assistir ao percurso de um pensamento que ousa enfrentar as suas próprias contradições, que não teme mudar de opinião para não mudar de princípios."A mesa-redonda - em que participaram Isabel Vargues, Fernando Catroga e Paulo Archer de Carvalho, da Universidade de Coimbra, José Manuel Tengarrinha e António Ventura, da Universidade de Lisboa - além de ter sido dos momentos mais estimulantes dos trabalhos, serviu para pensar melhor o pensamento cívico e político de Garrett.De leitura obrigatória para deputados, actuais e futuros, é uma carta aos (e)leitores de 1826, onde Garrett em "digressões fatais" fala do que seria necessário para ser parlamentar: ter "letras mas sem tretas", "inteireza de carácter", "nem ignorantes nem sabichões"... A liberdade? "Não se faz num dia." A convivência democrática não pode ser cega. Avisa: um amigo é um "inimigo domesticado" amigos, no plural, são "sujeitos de que é bom desconfiar para não se ser logrado".Capítulo III Onde se falou verdade, sem mentir, sobre a situação do Teatro em Portugal.José Oliveira Barata - encenador de "As Profecias do Bandarra" que subiu ao palco do Gil Vicente pela Cooperativa Bonifrates, no dia 4 - falou de um dos núcleos duros da obra de Garrett: o teatro (tendo sido o "Frei Luís de Sousa" abordado noutras intervenções). Em resumo: Garrett tem uma visão muito lúcida da história do teatro em Portugal. Tendo um projecto renovador, as suas teses são actuais. Disse Barata, da Universidade de Coimbra: "As editoras portuguesas não apostam nos textos dramáticos portugueses, a formação dos actores é deficitária, os estudos de teatro são uma província menor da literatura. É sintomático que, a seguir ao 25 de Abril, já depois de se ter chamado Teatro Nacional D. Maria II/Casa de Garrett, esta referência tenha desaparecido. Como, aliás, tinha acontecido no tempo de Salazar." Capítulo IV Onde se falou no despropositado, e inclassificável, livro "Viagens na Minha Terra".Este capítulo não tem divagações. O esperado aconteceu - a obra mais referida, citada, analisada foram as "Viagens" e sobre elas disseram-se muitas interessantes coisas.Retenhamos quatro leituras possíveis. 1. "as viagens são as rotas do discurso literário por terras da ficção, isto é, peregrinar por esse Portugal fora em busca de histórias para contar" numa "viagem na terra do escritor, que é como quem diz, uma viagem na literatura" (Maria Alzira Seixo da Universidade de Lisboa). 2. "Ler as 'Viagens' não é o mesmo que ler um romance (que as 'Viagens' não são) ou um conto de desenlance unívoco (...). Ler as 'Viagens' é (deve ser) sobretudo uma aventura" (Carlos Reis da Universidade de Coimbra). 3. "as 'Viagens na Minha Terra' são, com algum rigor, 'deslocamentos na minha terra', e com todo o rigor, 'deslocamentos na minha linguagem'" (Victor J. Mendes, da Universidade de Massachusetts Dartmouth, EUA). 4. As "'Viagens' e a 'Viagem a Portugal', de José Saramago, separados por mais de um século," apontam para um mesmo projecto: "o fim de uma viagem textual é sempre recomeço de outra" (Tereza Cristina Cerdeira da Silva, da Universidade, da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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