Dormir com meio cérebro

Não são só as asas e a capacidade de voar que os seres humanos podem invejar às aves. Cientistas norte-americanos descobriram que elas são também capazes de fazer uma habilidade proverbial, que qualquer um gostaria de fazer: dormir com um olho aberto e outro fechado. Ou, mais correctamente, dormir apenas com metade do cérebro.

Cientistas da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, fizeram uma descoberta de fazer inveja a qualquer pessoa que já teve a experiência de cabecear à secretária depois de almoço: lutar para manter o pescoço direito e os olhos abertos, ao mesmo tempo que procura controlar os movimentos do chefe, para que este não veja como está a ser crítica a aproximação da hora da sesta. Uma experiência feita com patos demonstrou que as aves conseguem dormir apenas com um lado do cérebro - literalmente com um olho aberto e outro fechado."As aves resolveram o problema de dormir em situações de risco desenvolvendo a capacidade de dormir com um olho aberto e um hemisfério cerebral acordado", escrevem Niels Rattenborg, Steve Lima e Charles Amlaner no número de hoje da revista britânica "Nature". Ou seja, enquanto os patos utilizados na experiência - da espécie "Anas platyrhynchos", conhecidos como patos-reais e que são os mais vulgares em Portugal - dormiam com um lado do cérebro, o outro estava suficientemente alerta para iniciar uma acção de fuga em menos de um segundo (0,165 segundos), caso detectasse a aproximação de um predador.A investigação teve como ponto de partida o facto já conhecido de que cada olho e respectivo hemisfério cerebral das aves pode funcionar independentemente durante o estado de vigília. Portanto, pensou esta equipa, "as estruturas neuro-anatómicas e os processos fisiológicos que permitem o funcionamento independente dos hemisférios quando estão acordadas poderiam também permitir um controlo hemisférico do sono". Por isso, os cientistas dispuseram os patos em linha, para verificar se aqueles que estavam nos extremos - e logo mais expostos ao ataque de um possível predador - dormiam de uma forma diferente da dos que estavam no centro, numa posição mais protegida. E concluíram que a proporção das aves que estavam nos extremos e dormiam com um olho aberto - precisamente o que ficava para o lado de fora, de onde vinha o perigo, simulado com um vídeo de um predador - era muito maior do que a das que ficavam no centro. Nas aves que estavam no meio da linha, 12,4 por cento dormiram apenas com um hemisfério cerebral, enquanto 31,8 por cento das aves nas pontas dormiam desta maneira. Por isso, os investigadores consideram ser esta "a primeira vez que se conseguiu verificar um caso em que um animal consegue controlar o sono e a vigília simultaneamente, em regiões diferentes do cérebro, respondendo a estímulos comportamentais". Electroencefalogramas (EEG) feitos aos patos revelaram que o hemisfério cerebral adormecido estava mergulhado numa fase do sono sem sonhos - aquela que constitui cerca de 80 por cento do tempo em que os seres humanos estão a dormir. Esta fase divide-se em quatro momentos: nos primeiros, há ainda um considerável tónus muscular e regista-se apenas uma alteração ligeira na actividade cardiovascular e respiratória. O indivíduo ainda pode ser acordado com facilidade e, se for despertado, é raro dizer que estava a sonhar. É aquele período em que, em vez de sonhar, parece que estamos a pensar. Mas, as últimas fases correspondem aos períodos de sono profundo, quando há mesmo um bloqueio das mensagens sensoriais e perda de consciência. É nesta altura que são segregadas hormonas de crescimento, que permitem que o corpo se restabeleça do desgaste diário e é também nesta fase que acontecem as sensações de queda - que são ataques de epilepsia mínimos, sem qualquer gravidade -, os pesadelos, ou o sonambulismo.Os restantes 20 por cento do tempo que passamos a dormir correspondem à fase de sono paradoxal - também conhecida como Rapid Eye Movement (REM) -, que é quando sonhamos. Nesta fase, embora o indivíduo pareça estar a dormir, o padrão do EEG é semelhante ao do estado de vigília. Mas, paradoxalmente, é nesta altura que o sono é mais profundo e o despertar mais difícil. O único outro caso conhecido de animais que conseguem dormir só com um dos lados do cérebro é o dos mamíferos marinhos, como as baleias e os golfinhos. Este padrão do sono parece ser necessário para que os animais possam vir à superfície respirar, mesmo quando estão a dormir. Esta capacidade demonstra "o equilíbrio dinâmico que os animais têm de conseguir fazer entre a necessidade fisiológica de dormir e as suas consequências ecológicas", escrevem os investigadores na "Nature".

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