Os santos de Zurbarán em Badajoz
Francisco de Zurbarán é o pintor que Badajoz oferece à arte internacional. Nascido em 1598, educado em Sevilha regressa à província natal logo no início da sua carreira, aplicando à pintura os preceitos militantes da Contra Reforma católica. Além disso, Zurbarán, tem alguma coisa a ver com Portugal: obras suas completaram programas arquitectónicos de Filipe II e o pai de Josefa de Óbidos formou-se como pintor numa Sevilha dominada pelos seus cânones. Até hoje Badajoz dedica-lhe uma exposição.
No Museu de Belas-Artes de Badajoz a iconografia da Contra Reforma expõe-se aos nossos olhos com uma rara clareza. Longe do misticismo incontrolável de El Greco ou do mundanismo cortesão de Velasquéz, Francisco de Zurbarán, seguro das técnicas de representação do corpo e dos seus adereços, da construção de um espaço subjectivo através dos jogos de sombra e de luz, constrói um universo imenso mas fechado de figuras sagradas. É um universo capaz de ilustrar uma época: a da implantação dos cânones artísticos contra-reformistas na Península Ibérica.Entre Outubro e Dezembro de 1998 uma exposição alargada da obra de Francisco de Zurbarán, de quem se comemora o quarto centenário de nascimento, esteve no Museu de Belas-Artes de Sevilha. Hoje é o último dia (das lOh às 14h) para ver, no Museu de Belas-Artes de Badajoz, uma selecção restrita dessa vasta exposição. No espaço de uma década, é o segundo aprofundamento do conhecimento da obra deste pintor que, em 1987, foi objecto de uma cuidada apresentação internacional (com um catálogo considerado ainda hoje definitivo) em Nova Iorque, Paris e Madrid.A exposição restrita que agora se apresenta faz-se principalmente em torno de obras hoje colocadas em colecções situadas fora da província que o viu nascer e onde tanto trabalhou. Nascido perto de Badajoz (Fuente de Cantos, 1598), filho de um endinheirado comerciante basco e de uma senhora local, a sua aprendizagem realizou-se em Sevilha a partir dos 15 anos, mas regressou à terra natal sem realizar o tradicional exame de ingresso no Grémio dos pintores. No entanto, é imediatamente contratado para extensos programas iconográficos em instituições conventuais e paroquiais de toda a região estremenha: Guadalupe, Zafra, Badajoz, Llerena e outras. Até que, em 1627, recebe mesmo o seu primeiro encargo para Sevilha executando, para o convento dominicano de São Paulo Real, 21 quadros de grandes dimensões - o que pressupõe já a abertura do que seria a sua oficina. Em 1628, estabelece-se mesmo na cidade onde fora aluno, concluindo sucessivos e cada vez mais ambiciosos contratos.Um dado curioso da sua estratégia de implantação no mercado é, aliás, a comparação entre os seus dois primeiros contratos sevilhanos. Se no primeiro, já citado, nenhuma reivindicação é feita e as pinturas da vida de S. Domingos são pagas por uma soma inferior a 500 ducados, no segundo, para o Convento de la Merced Calzada, os 22 quadros da vida de São Pedro Nolasco, um santo contra-reformista, são avaliados em 1500 ducados, mais fornecimento de comida e alojamento para si e para os seus oficiais e ainda de todos os materiais de trabalho.Desde esta primeira fase sevilhana que Zurbarán estabelece as características do seu estilo. Um forte interesse pelo pormenor das formas e pelas qualidades físicas dos objectos que contrastam com um grande desinteresse pela realidade espacial. Para acentuar a dimensão psicológica e emocional, numa construção teatral da presença humana, são fundamentais os jogos de iluminação, que dão origem a seres de luz isolados num campo de trevas. Por outro lado, Zurbarán cumpre a ilustração dos novos santos católicos, propagandistas da Contra-Reforma ou dos dogmas pelos quais a Igreja de Roma se bate. É disto exemplo a vasta temática em torno da Imaculada Conceição, principal causa religiosa da Sevilha do Século de Ouro, e presente na teoria de figuras com que completou a sua segunda encomenda sevilhana: um São Carmelo e um São Pedro Pasqual (ambos de cerca de 1630) representados no momento da sua visão da Virgem; uma tela de grande fôlego isolando a própria "Imaculada Conceição" (1632); ou uma outra tratando, segundo um gosto de imaginário mais popular, a imagem da "Virgem Menina Dormindo" (1665-60). Zurbarán contribuiu para o próprio estabelecimento da nova iconografia e discurso artístico-religioso capaz de cumprir as directivas do Concílio de Trento do século anterior. E a Sevilha que o acolhe é uma cidade riquíssima e contrastante: ao seu cosmopolitismo licencioso de grande porto de ligação às Américas junta-se o fervor religioso que sustenta os seus 23 conventos de monjas e 33 de frades. A sociedade civil necessitava de renovar os valores espirituais e materiais, de ser disciplinada pelo misticismo religioso militante que a sua pintura ergue.Nas doze salas restauradas do Museu de Badajoz, de dimensão raramente adequadas à grandiosidade das peças expostas, sucedem-se as pinturas que ilustram o modo como cumpriu essa missão. Um dos pares mais impressionantes - em termos temáticos e plásticos é "A Flagelação de São Jerónimo" e "As Tentações de São Jerónimo", pintadas para a Sacristia da Igreja de Guadalupe, em 1639. Procurando representar o santo em duas fases da vida, trata de uma representação das idades do homem, entre a luz da juventude e o tenebrismo de velhice, ao mesmo tempo que um único discurso religioso de mortificação da carne reúne os dois tempos. Outra obra do período áureo da sua pintura são os quatro evangelistas do altar-mor do convento da Cartucha de Jerez (1636), que se relaciona com o apostolado existente em Lisboa (ver texto em baixo). Pode-se considerar a iconografia religiosa da sua obra, claramente dominante, como um conjunto de temas devocionais destinados a excitar a piedade e a devoção, a instruir o povo cristão nas suas virtudes. "O Salvador Benzendo" (1638) é exemplo desta vocação, assim como as crucificações, que iniciou em 1624 como uma série temática autónoma: "Cristo como Doador" (obra tardia e aquisição recente do Museu do Prado, Madrid) é um exemplo magnífico do poder da luz e da cor na definição dos volumes e carnações e na construção de um discurso destinado a conduzir o crente à identificação individual e emocional com as imagens. O Concílio de Trento induzia à sobreposição do processo criativo, da emoção e da fé. Com o seu "São Pedro Orando perante Cristo Atado à Coluna" (1650) essa meditação tem uma profundidade que, no entanto, pode orientar-se para dimensões que hoje podemos considerar risíveis e que o conceptismo literário da época cristalizará também. Na pintura de Zurbarán, essa temática crística e mariana pode alcançar também um pietismo menos exigente. Conduz-nos, por exemplo, à imagem do cordeiro, uma série numerosa de que se apresenta uma pintura (já vista em Lisboa). Manso e obediente, ele é o símbolo da morte que Cristo aceitará para nos salvar. Este tipo de pintura, que pratica na segunda metade do século e até à sua morte, em 1664, significa uma dulcificação da carga programática anterior. Zurbarán, que acaba os seus dias na corte madrilena para a qual já tinha trabalhado inicialmente em 1634, deixa-se comover com temas mais ilustrativos, pedidos por uma vasta clientela particular de nobres e clérigos devotos, e arrisca mesmo aprofundar os temas profanos, assuntos literários e históricos ou exercícios de pura pintura como os seus "Bodegones" (naturezas mortas) - apenas um é agora apresentado, de 1640 -, através dos quais a crítica tende mesmo a definir o protótipo espanhol do género.