O idiota da aldeia global
O filme "Doidos por Mary" trouxe finalmente à ribalta Jonathan Richman, um trovador com três décadas de carreira sem um único êxito significativo. O seu novo álbum "I'm so Confused" é a autobiografia de um genuíno idiota da aldeia global.
Em 1996, Neil Young assinou Jonathan Richman na sua editora Vapor. Foi a primeira tentativa para o fazer aceder a um público mais vasto, na sequência de uma carreira iniciada nos anos 70 sem uma única entrada no "top-10" americano. "Surrender to Jonathan", o primeiro disco resultante desse acordo testemunhou um renascimento artístico, que o reconciliou com a minoria dos seus fãs de longa data, mas não lhe trouxe um substancial aumento de vendas.Acabou por ser o cinema a trazer finalmente à ribalta o cantor nascido em Boston em 1951. Mais concretamente, o momento de Jonathan chegou com "Doidos por Mary", a comédia "politicamente incorrecta" dos irmãos Farrelly com Cameon Diaz, que foi terceiro maior sucesso de bilheteira de Hollywood no ano passado. Concebido como uma recriação das farsas da Idade Média, "Doidos por Mary" inclui na sua galeria de personagens singulares a figura de um recitante, que funciona como cartazista, anunciado e pontuando a acção.A diferença é que o recitante em questão desempenha o seu papel cantando palavras insólitas nos lugares mais exóticos. É Jonathan Richman acompanhado pelo baterista Tommy Larkins, que começa por anunciar a história em cima de uma árvore em fundo de paisagem suburbana e acaba abatido por uma bala perdida em Miami Beach, embora ressuscite a tempo do genérico final. A figura de Jonathan, de cabelo curto encaracolado e sorriso rasgado, com um ar algo ingénuo e de campónio, acompanhado por aquele baterista pitoresco, não são normais. E muito menos o são os versos que aquele canta, que soam como a estória do filme contada a crianças.Graças a "Doidos por Mary", Jonathan ganhou instantaneamente a popularidade que lhe escapou ao longo de três décadas de carreira. É ainda inverosímil que o seu novo álbum "I'm so Confused" suba aos "tops", mas é mais que provável muita gente comprar o disco com a banda sonora, onde tem três temas, ou o seu novo álbum "I'm so Confused", que do filme retoma apenas "True love is not nice".A associação de Jonathan com "Doidos por Mary" é, no entanto, equívoca. Haverá quem pense, provavelmente a maioria, que para ele não passa de uma comédia, que não é possível que alguém assuma convictamente aquele papel de "idiota da aldeia". E, no entanto, a imagem do recitante que desempenha não poderia ser um retrato mais fiel do que tem sido a carreira deste trovador singular.Os amantes do punk e da tradição de rock "arty" iniciada com os Velvet Underground sabem que ele é. Jonathan foi aquele que, no início dos anos 70, trocou Boston por Nova Iorque, introduziu-se na trupe de Andy Warhol e pegou nas guitarras onde Lou Reed as tinha deixado. Formou os Modern Lovers e gravou um álbum de estreia que mostrou o caminho a seguir ao rock da segunda metade dessa década.O disco dos Modern Lovers foi gravado em 1972-73 sob a produção de John Cale, mas só saiu em 1976. Por essa altura rebentava o punk em Nova Iorque, mas Jonathan já estava de regresso a Boston, onde veio a protagonizar um dos mais radicais processos de auto-reinvenção na história da música popular. Nos três álbuns seguintes de estúdio e no ao vivo que gravou ainda nos anos 70 para a Berserkley, Jonathan trocou progressivamente os instrumentos eléctricos pelos acústicos, passando a cantar sobre picadas de insectos, abomináveis homens das neves, pequenos aeroplanos, dinossauros bebés, camisas lavadas e vendedores de gelados.As razões desta surpreendente mudança de registo assomam na autobiografia que Jonathan agora oferece em "I'm so Confused". Sejam quais forem, na altura não foram compreendidas e não poderiam ser mais contracorrente. Isso explica a fraca recepção desses discos de genial reinvenção de Jonathan, quando apenas o "single" "Egyptian Reggae" alcançou um êxito modesto na Europa. Mas o que perseguia Jonathan não era um estatuto de peculiar originalidade, ou de génio incompreendido e, uma vez decidido a ser o "idiota da aldeia", numa mais mudou de pele, gravando regularmente discos de qualidade desigual. Até agora e ao novo fôlego criativo que lhe trouxe o êxito de "Doidos por Mary".I'm so Confused (8)Vapor, distri. WarnerAs canções de Jonathan Richman não se descodificam, descrevem-se apenas. Não têm segundos sentidos, nem sugerem nada para além do que afirmam. As suas palavras dizem aquilo que querem dizer, e o que lhes tirarmos ou acrescentarmos é falso e não está lá. Mas, se cada canção é um manifesto pessoal, "I'm so Confused" é um pouco mais do que isso - é uma autobiografia de um heterodoxo cantor/compositor que aos 47 anos de idade continua sem querer saber o que significa a maturidade. Ou melhor, este é o álbum da maturidade de um artista que recusa a maturidade como toda a gente a entende."Love me like I love" explica porquê, regredindo até à infância: "Quero que me amem como eu sou capaz de amar (...) da maneira que me amavam quanto eu tinha seis anos de idade." Porque: "Quando eu cresci senti-me sozinho e ninguém me amava como eu sou capaz de amar." Essa involuntária solidão marcou a entrada na idade adulta descrita em "Nineteen in Naples": "Quando eu tinha 19 anos era tão inseguro (...), era demasiado intelectual." Foi justamente nessa idade que formou os Modern Lovers para prosseguir a tradição de rock literário dos Velvet Underground.Rapidamente, no entanto, Jonathan apercebeu-se de que essa intelectualização não passava de um subterfúgio e que a sua verdadeira ambição era regredir até ao tal ideal de amor cândido dos seus seis anos de idade. Por isso escreveu "Affection", canção primeiro gravada para o álbum "Back in Your Life" de 1979, uma espécie de autocrítica onde declara: "Eu era uma estrela que dizia não ter tempo para os outros (...) mas depois relaxei um pouco e encontrei pessoas que gostaram de mim (...) e me ajudaram a encontrar mais afecto." Agora neste novo álbum, "Affection" reemerge numa nova versão que na sua maneira peculiar responde aos comentários de: "Jonathan estás a assustar-nos, porque julgamos que esta é a parte da canção em que as pessoas têm que se abraçar e nós nem gostamos do nosso vizinho (...)." Ao que ele replica: "Não se preocupem, não são obrigados a fazer isso (...) só fazem se sentirem vontade."Ou seja, Jonathan não quer converter ninguém, nem se julga num estado de graça acima dos outros. Como diz "True love is not nice", "a dor é o nome do amor" e "se já foste magoado uma vez, serás magoado a dobrar, porque o amor verdadeiro não é agradável". Há momentos em que a fome de afecto se apazigua, mas o que invariavelmente regressa é o estado de confusão, retratado na canção que nada por acaso dá nome a este álbum: "Penso que talvez devesse ficar sozinho, mas sou demasiado novo para ficar em casa." Demasiado novo, claro, é, para ele, ter 47 anos de idade.Tratando-se de uma autobiografia, "I'm so Confused" é uma natural recapitulação das receitas musicais que Jonathan tem empregado ao longo da sua carreira. "Nineteen" recupera o som à Velvet dos primeiros Modern Lovers, "When I dance" segue um figurino de country acústico, "True love is not nice" é característica de uma banda de rua e o final "I can't find my best friend" é um épico com a grandiosidade da idade de ouro do rock'n'roll."I'm so Confused" é então na essência um disco típico de Jonathan Richman, com a diferença de a produção ser de Ric Ocasek, mais conhecido como líder dos Cars. Especialista na formatação de canções ao gosto das rádios, Ocasek não desvirtua o som de Richman, mas lima-lhe as arestas, introduzindo teclados como interlocutores das guitarras, como ornamentação e sobretudo para produzir um som mais cheio. São recursos que conferem maior acessibilidade ao reportório de um artista a necessitar de uma consagração mais que merecida.