Um almoço surrealista cinquenta anos depois
Foi há cinquenta anos que abriu, num 4º andar do Chiado, a primeira e única exposição do Grupo Surrealista de Lisboa. Na época, era uma pedrada no charco da burguesia bem-pensante lisboeta. Durou pouco, o movimento, mas deixou raízes. Um almoço reuniu ontem os três sobreviventes do grupo.
"Foi um almoço muito agradável. Parecia que estávamos em Paris". Este foi o comentário de José-Augusto França ao almoço que ontem reuniu, no bar do Museu do Chiado, os sobreviventes do Grupo Surrealista de Lisboa, que assim comemoraram o 50º aniversário da inauguração da Iª exposição do grupo.Para depois do almoço, convidaram "testemunhas" para o café. Rui Mário Gonçalves e Cristina Azevedo Tavares, críticos de arte, com Margarida Acciaiuoli, historiadora, entre outros, juntaram-se assim aos três únicos sobreviventes do grupo: além de França, os artistas Marcelino Vespeira e Fernando de Azevedo."Está a ver a minha jóia?", perguntava Marie-Therèse Mandroux-França, outra das "testemunhas", mostrando a pregadeira que trazia na lapela do casaco, "é uma pintura do António Pedro". E continuava, contando a história da miniatura: "Foi ele que fez para a mulher, em Londres, durante o 'blitz'. Gostava muito de ir a antiquários, uma vez viu isto, achou graça, comprou e mudou a imagem..." E, efectivamente, trata-se de uma pequena pintura surrealista, uma figura híbrida inserida numa paisagem.O ambiente era propício ao desfiar de recordações. Rui Mário Gonçalves dava a sua achega. "Eu não vi esta exposição, vi uma outra, alguns anos depois... fui lá - era muito miúdo, evidentemente, mas já usava calças compridas! E fique a olhar para aquilo uma data de tempo". O lugar não foi, evidentemente, escolhido por acaso - é no Museu do Chiado que se conserva o principal núcleo de obras surrealistas portuguesas, foi aqui perto, num 4º andar da Travessa da Trindade, que há exactamente 50 anos abriu a exposição que ontem se comemorou.Mas o que foi exactamente o Grupo Surrealista de Lisboa? Um grupo de artistas - primeiro - que desde 1947 tentava revolucionar a arte e a sociedade portuguesas. Dois artistas mais velhos, António Pedro e Fernando Dacosta, que com Pamela Boden tinham realizado uma exposição em 1940, numa casa de móveis, praticavam uma pintura que apelava inegavelmente à imaginação do visitante. Nessa altura, já se referia no catálogo André Breton, o líder do surrealismo parisiense, a par de Baudelaire, Heraclito e Hamann. A exposição, com raras excepções, recebeu as esperadas vaias do provinciano público lisboeta. Mas deixou a semente necessária para inquietar os espíritos de uma geração mais jovem.Entre 40 e 49, as referências ao surrealismo diversificaram-se - literárias, em diversas publicações, e, na obra de Dacosta e Pedro, pictóricas. A estes dois, juntar-se-ia pouco depois Cândido Costa Pinto, que haveria de tomar a iniciativa de formar o grupo de Lisboa, em Outubro de 47. Além deste, incluía Vespeira, Fernando de Azevedo, António Domingues, Moniz Pereira, Cesariny de Vasconcelos (que rompeu com o grupo ainda antes da exposição de 49), Alexandre O'Neill e José-Augusto França. O primeiro acto do grupo, muito à maneira dos métodos de Breton em França, foi romper com Costa Pinto, por este ter participado numa exposição do Secretariado Nacional de Informação (SNI), o prenúncio de uma outra zanga, esta com o grupo neo-realista.A exposição de 49 incluía 51 trabalhos, a maior parte dos quais ainda tinha estado prevista para integrar a III Exposição Geral de Artes Plásticas. O'Neill, Dacosta, Pedro, Azevedo, Moniz Pereira, Vespeira, Domingues e França eram os participantes. Muitas das obras que se tornaram mais tarde emblemáticas deste movimento em Portugal estavam aqui presentes, entre as quais um grande "cadavre-exquis" feito por Azevedo, Pedro, Vespeira e Moniz. Os membros do Grupo Surrealista de Lisboa dispersaram pouco depois, seguindo cada um a sua carreira. Cesariny formaria um outro grupo, "Os Surrealistas", que nos anos 70 ainda se considerava activo. José-Agusto França, o impulsionador deste encontro, seguiu a carreira académica e tornou-se no principal historiador da arte contemporânea portuguesa - e do movimento que, em tempos, ajudou a fundar.Ontem, no Museu do Chiado, era visível a boa disposição dos três. Quando se preparavam para visitar a sala do surrealismo, que se encontrava em fase de desmontagem para uma próxima exposição, indagaram que obras ainda lá estavam. "Só as que estão em vitrinas", foi-lhes respondido.