Monopólio genético na Islândia
A homogeneidade da população islandesa transforma-a numa autêntica mina de ouro para a investigação genética e uma companhia de Reiquejavique prepara-se para a explorar, em regime de monopólio, associada ao gigante farmacêutico J. Hoffman-La Roche. Muitos cidadãos islandeses e a comunidade científica internacional manifestam-se contra esse projecto, autorizado pelo Parlamento da Islândia.
Para muitos cidadãos islandeses e parte importante da comunidade científica internacional, a Islândia corre o risco de tornar realidade o universo rigorosamente vigiado pelo "Big Brother" que George Orwell criou no romance "1984": uma companhia de biotecnologia conseguiu do Governo e do Parlamento islandeses o direito de construir e explorar durante 12 anos uma base de dados genética de toda a população da Islândia, que não garante absolutamente o anonimato dos 272 mil islandeses.O Parlamento islandês aprovou há um mês uma lei que concede à empresa deCODE Genetics o direito de criar e gerir uma base de dados genética de todos os islandeses, que será cruzada com toda a rica informação genealógica das famílias daquele país, e com os registos do sistema nacional de saúde desde a I Guerra Mundial (ver "Base de dados genética na Islândia", PÚBLICO 20/12/98). O interesse de fazer isto na Islândia reside no facto de os 272 mil habitantes desta ilha serem uma das populações geneticamente mais homogéneas do mundo: praticamente toda a população descende dos colonos vikings e celtas que lá chegaram no século IX, sem que outras vagas de imigração tenham ocorrido. Por isso, a variabilidade genética inevitável numa população mais aberta é reduzida a valores mínimos, o que permite identificar mais facilmente as anomalias ou variações genéticas que podem estar na origem de algumas doenças.Estes 1100 anos de isolamento produziram um acentuado interesse pela genealogia, documentado pelas suas sagas épicas e por registos das igrejas e das próprias famílias, o que permitiu à deCODE fazer uma base de dados genealógica muito rica. Por outro lado, o serviço nacional de saúde islandês tem registos médicos da população desde a I Guerra Mundial e resultados da recolha de tecidos humanos desde a II Guerra.Por isso é que Kari Stefanson - um cientista islandês que trabalhou nas universidades norte-americanas de Chicago e Harvard e fundou a deCODE - pensou utilizar a população do seu país como uma verdadeira mina de informação genética. O objectivo é descobrir os genes implicados em doenças que afectam toda a humanidade - como a psoríase, na qual aquela empresa de biotecnologia já conseguiu avanços importantes. Uma vez descobertos esses genes, caberá ao gigante da indústria farmacêutica F. Hoffmann-La Roche - com quem a deCODE assinou um acordo de exclusividade, no valor de 200 milhões de dólares - desenvolver medicamentos para curar essas doenças (ver "Caça aos genes islandeses", PÚBLICO 27/10/98, ). Esta situação de monopólio desagrada aos investigadores internacionais, que dessa forma se vêem privados do acesso aos avanços científicos que podem ser proporcionados por esta base de dados. Mas o projecto tem ainda várias outras características que o desvirtuam. "Acreditamos que esta base de dados pode ser muito importante para o avanço da investigação genética. Mas tal como está estruturada, levanta sérios problemas éticos e científicos", afirmam os norte-americanos Henry T. Greely, professor de direito na Universidade de Stanford, e Mary Claire King, professora de antropologia na Universidade de Washington, numa carta aberta divulgada no site de um grupo de cidadão islandeses que lutam contra a base de dados - http://www.simnet.is/mannvernd/english/index.html . Para começar, a legislação aprovada pelo Parlamento não prevê a necessidade de os dados só poderem ser utilizados se os cidadãos o autorizarem explicitamente - em vez disso, quem quiser ser excluído têm de o manifestar. A Associação Médica Islandesa diz que será quebrada a confidencialidade entre o clínico e o paciente - até porque os dados genéticos não são serão anónimos, mas apenas encriptados. "Num país de apenas 272 mil pessoas será relativamente fácil estabelecer quais os dados que identificam os indivíduos", afirma um artigo publicado no número de 2 de Janeiro da revista científica "British Medical Journal". A revista de divulgação cientifica britânica "New Scientist" dá mesmo um exemplo, no editorial de 5 de Dezembro: "Saber que alguém partiu uma perna a 25 de Junho de 1979 poderá ser suficiente para identificar o seu processo médico". Na verdade, diz a "New Scientist", a criação de uma base de dados nestes moldes contraria até as disposições da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Convenção de Protecção de Dados do Conselho da Europa e até a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos da ONU, ao prever que as pessoas a quem seja descoberta uma predisposição genética para determinada doença sejam alarmadas com previsões da evolução da sua saúde.A revista científica "Nature Biotechnology", considera mesmo, num editorial publicado no número de Junho de 1998, que o projecto da deCODE Genetics é um exemplo dos "erros de gestão da informação" que as empresas de biotecnologia devem evitar: "A biotecnologia já é um assunto suficientemente complicado sem que surjam problemas de confiança."