Morreu o cientista do teatro
Jerzy Grotowski morreu em Itália. Tinha 65 anos. Conhece Grotowski? Ele é a figura emblemática do Laboratório de Wroclav, na Polónia, onde se estabeleceram algumas bases científicas para o teatro, dividindo muito as opiniões. Mas o teatro pobre que Grotowski defendia continua a ter poucos, mas bons, adeptos. Também em Portugal. Os encenadores João Mota, Christine de Villepoix e José Filipe Pereira evocam a sua experiência pessoal com Grotowski.
Após doença prolongada, morreu na quinta-feira em Pontedera (Itália) o homem de teatro que, neste século, mais desestabilizou a arte dramática e mais contribuiu para dar uma base científica do trabalho do actor. O "teatro pobre" que Jerzy Grotowski teorizou e praticou é algo de tão exigente e rigoroso que é raro encontrar hoje muitos seguidores das suas propostas. Grotowski tinha 65 anos e há trinta que vivia desterrado naquela pequena cidade da Toscânia, onde continuava a receber actores e homens de teatro. Asceta por natureza, Jerzy Grotowski tinha fechado, em finais dos anos 60, o Laboratório teatral de Wroclav, onde, com um pequeno grupo de actores, tinha começado a aprofundar até às últimas consequências as técnicas de teatro físico, de Stanislawski, ou algumas propostas do teatro da crueldade, de Artaud. A apresentação de espectáculos em público era a última preocupação do mestre, que, entretanto, fez alguns - não muitos - discípulos e admiradores em toda a Europa. O nome mais em evidência é o do italiano Eugénio Barba, que, na Noruega, e depois, na Dinamarca, fundou o seu próprio laboratório, o Odin Teatret (que, nos últimos anos, no Festival Sete Sóis Sete Luas, tem passado regularmente por Portugal, tendo apresentado e dirigido acções de formação na Fundação Gulbenkian).Desiludido com o seu trabalho e com a Polónia, Grotowski encerrou-o em 1976, mas manteve aberto, em Pontedera, um "Work Center", onde continuou a acolher discípulos. Entre eles, os actores Filipe Pereira e Christine de Villepoix que fundariam em Estarreja o ACTO.Instituto de Arte Dramática, onde desenvolvem um trabalho que, no essencial, é inspirado pela mística e pelos ensinamentos de Grotowski.Os efeitos do rigoroso treino físico e psíquico foram transparecendo em espectáculos como "Akropolis", "O Príncipe Constante" e "Apocalypsis cum Figuris", que, de longe em longe, eram apresentados fora da Polónia ("O Príncipe Constante" em Paris e "Apocalypsis cum Figuris" no Festival de Edimburgo), onde eram vistos por escassas dezenas de pessoas. Nos Estados Unidos, Grotowski influenciaria o trabalho do coreógrafo Jerome Robbins.Na base da arte de Grotowski está o conceito de teatro pobre. A alma do teatro é o actor. Um actor que não deve acumular truques e métodos, mas sim eliminar toda a espécie de bloqueios. O teatro não é uma acumulação de efeitos, é uma eliminação do supérfluo.Segundo Grotowski, "o teatro contemporâneo depende da cleptomania artística", é parasitário de outras disciplinas, é uma coisa híbrida. E o objectivo de Grotowski é pôr em evidência todas as possibilidades do corpo do actor. Para tanto, renuncia-se a quase tudo o que parece indispensável: efeitos de luz, maquilhagens, postiços. "A aceitação da pobreza no teatro - escreveu Grotowski em 'Por um Teatro Pobre' - o despojamento do que não é essencial, revelou-nos não só o que é específico do teatro, mas até as profundas riquezas que fazem parte da própria natureza da forma artística".Foi Grotowski que um dia fez notar que, "se todos os teatros fossem encerrados no mesmo dia, boa parte da população só daria por isso algumas semanas depois. Se, pelo contrário, fossem eliminados o cinema e a TV, no dia seguinte toda a população entraria em efervescência". Os actores estão conscientes desse problema, mas, no dizer de Grotowski, tropeçam na solução pior: "Se o cinema domina o teatro do ponto de vista técnico, porque não fazer um teatro mais técnico? Inventam então novos palcos, montam espectáculos com mutações complicadas de cena, complicam as luzes e os cenários". A proposta do guru polaco só pode ser uma: "Se o teatro não pode ser uma atracção técnica, o melhor é renunciar à técnica. Resta-nos, assim, um actor 'santo', num teatro pobre". Pode dizer-se que tal proposta nunca foi muito popular. Nem para o público "voyeur" nem para os actores exibicionistas. Embora transportasse o fermento da polémica e da divisão (houve tempos em que nos dividíamos entre brechtianos e grotowskianos). Referindo-se a um actor polaco de antes da Grande Guerra, que falava de público-tropismo - comparando-o à atracção das plantas para a luz -, Grotowski (no livro já citado) jurava que esse público-tropismo era o pior inimigo do actor. Inimigo figadal da exibição, que identificava com prostituição, Grotowski criou um novo ideal de actor asceta que, segundo se diz, era magnificamente encarnado por Ryszard Cieslak, o intérprete de "O Príncipe Constante", espectáculo que foi para quem o viu, dentro e fora da Polónia, o ponto mais alto do trabalho do Laboratório de Wroclav. A propósito ou a despropósito, é curioso referir que "O Príncipe Constante" parte de uma peça de Calderón de la Barca - ou duma versão polaca não muito fiel - que tem como herói o Infante Dom Fernando, filho de D. João, Rei de Portugal, que, feito refém, no Norte de África, foi torturado e morto, na presença dos irmãos, que depois o abandonam à sua sorte. Aí está um vínculo a unir-nos a Grotowski. Para aqueles que não se revêem na teoria, na prática, no rigor e na ascética teatral de Grotowski.