A exposição do mundo português
Portugal desfila em parada: novos-ricos, padres, políticos e um porco. Enquanto isso, em banda sonora pode ouvir-se um fadista a cantar o hino nacional ou então o balido das ovelhas. Portugal dos Pequeninos numa explosiva e berrante farsa de João Botelho. "Tráfico", para acabar o ano a rir e arriscar, depois, ficar com alguma tristeza.
Já que Portugal é uma auto-estrada, quis "Tráfico" inventar o "road movie" lusitano. João Botelho pegou em meia centena de patrícios e deu-lhes ordens de circulação. Fosse para uma peregrinação ou um desfile de gigantones, o certo é que se meteram todos a caminho, sem destino aparente ou objectivo visível. Jesus encabeça as fileiras, como a criança irrequieta que, ignorando os avisos da mãe, teima em subir para o dorso do dinossauro abandonado numa praia em tempo de época baixa. Os que se lhe seguem perfazem as restantes cores num caleidoscópio tão garrido e anarca que o risco de nos perdermos está mais do que garantido.Há a mãe e o pai de Jesus (Rita Blanco e Adriano Luz), casal da baixa burguesia que aluga a felicidade com os sacos de droga achados sob as areias da praia; há a dupla de padres (Canto e Castro/Paulo Bragança) a quem dão boleia, depois de vendidas as relíquias da igreja e antes que um deles, pastor-fadista, faça levantar putas comovidas ao som do hino nacional tocado num "night-club" lisboeta; há um banqueiro (João Perry) perturbado por balidos de caprinos e um ministro (André Gomes) que olha para calças e vê saias, muitas e coloridas; há a amante do banqueiro (Alexandra Lencastre), com gosto por coleiras e cartomantes; há a mulher de um general (Maria Emília Correia) que também consulta a bruxa e tem pernas curtas, que se baloiçam no sofá da sala de uma artista plástica (Maria João Luís) que recebe uma teimosa actriz alcoólica (São José Lapa); há o referido general (Mário Jacques), que vende armas a uns russos espiados por uma mulher com cabeleira cor de fogo (Branca Camargo), sonhos de pirómana e vocação procriadora; há o "gigolo" (Nuno Melo) a quem esta recorre, estúpido e cabotino mas que sabe ter a "cultura de um europeu médio"; há Adões - esculturas vivas - expostos no Centro Cultural de Belém; e VIP a abanarem os penteados enquanto comem sardinhas com luvas brancas; há lixeiras tomadas por gaivotas, e vagabundos (José Pinto e José Eduardo) que lêem "Os Desastres de Sofia".Há muito mais. Personagens, actores, objectos, cores e músicas. "Tráfico" arranja lugar para tudo e todos, e tudo e todos tentam roubar o lugar uns aos outros. Cada cena surge pronta para a pilhagem, como se se tratasse de uma acostagem de navio corsário. Assim, o filme é um inacreditável ponto de confluências: sob fundo de fim civilizacional - como em "Week-End", de Godard, mas sem Maio de 68 à vista -, esta "comédia portuguesa" recorre tanto à perversão buñueliana como à farsa vicentina, à irrisão colorida de Almodovar como à paleta de luxo de Douglas Sirk. Outras sínteses improváveis: a abstracção geométrica do cinema de Jacques Tati convive com o conto de fadas distorcido por David Lynch; os "inserts" de objectos adquirem uma força simbólica como em Hitchcock e também uma capacidade de emancipação como em "Muriel" de Resnais, enquanto os ecos da revista à portuguesa e a sugestão da fotonovela armadilham o filme de tese puritano.O todo vê-se como o caos organizado por um agitador, um "complot" cinematográfico que embrulha cargas de dinamite em panos de veludo e cetim. Um resultado é tão masoquista que não pode aspirar ao estatuto de obra-prima, mas o gozo é quase orgásmico. A raiva foi elevada à escala de nação. Com a paisagem campestre reduzida a pasto de ovelhas ou "passarelle" para celebrações fadísticas e o espaço urbano completamente estilhaçado - quase imaterial, como o fumo da bomba vista pela janela do cabeleireiro -, a realidade é a das perucas, dos telemóveis, dos tacões dos sapatos, dos autocolantes da cruz vermelha, dos leitores de cassetes baratos onde está contido "o mistério da música", dos sexos das putas e das garrafas de "champagne", das estátuas gregas e dos dinossauros onde os novos-ricos apoiam os cotovelos e sorriem para a fotografia. O Portugal dos Pequenitos reinventa-se como um grotesco e espampanante mosaico que espelha os brandos costumes lusos e onde a bandalheira progride sob a forma de um corso "kitsch". Puro veneno, portanto.Já em "Três Palmeiras", a obra anterior de Botelho, o cineasta tinha experimentado as delícias da traficância cinematográfica. Nessa altura, o seu cinema ganhou uma liberdade nova, tão radical quanto esta: um plano para o rosto sofrido de Teresa Roby a parir uma criança em estúdio, seguido do contracampo com o real nascimento de um bebé numa maternidade. As artes mágicas da traficância ganhavam nesta aplicação um expoente máximo. O artifício era quase escandaloso de óbvio, os planos não "colavam", e, no entanto, era quase um milagre de audácia e prova de força do cinema, capaz de desafiar a vida nesta farsante junção de imagens.Em "Tráfico" não há nenhum "raccord" tão belo quanto este, mas todos participam da mesma lógica. Por isso, o filme de Botelho corre o risco de desiludir os espectadores que forem apenas à procura da comédia, dos "gags" e do riso. Pode-se rir bastante com "Tráfico", mas há um permanente "mal-estar" que parasita - e, por vezes, paralisa - o fluxo. A fluidez da comédia é contrariada pelas décimas de segundo que se sentem a mais na duração dos planos. Portanto, e de novo, não "colam", como se a passagem de uma coisa a outra - é isso o "tráfico" - estivesse sempre a ser questionada, o gozo coberto sempre de gravidade.A verdade é que a solenidade camuflada pelo delírio assenta bem a Botelho. Num filme em que as personagens traficam droga, armas, mulheres, religião, influências, dinheiro, cultura e mau gosto, o cineasta trafica actores - fabulosos e cabotinos -, planos, diálogos, hinos, ficções que quase não o chegam a ser, e fetiches vários (incluindo o maior para os portugueses: Portugal). Termina o filme com as palavras da Condessa de Ségur, porque ainda assim a história deve ter uma moral, mesmo que invertida. Por debaixo da falsidade deliciosa de um musical e da pseudoleveza da comédia, é por razões morais que "Tráfico" não esconde ter sido realizado por um cineasta moralista.De João Botelho, com Rita Blanco, Adriano Luz, João Perry, Alexandra Lencastre, Maria Emília Correia, Canto e Castro, Paulo Bragança, Maria João Luís, São José Lapa, Isabel de Castro, Laura Soveral, Nuno Melo, Rosa Lobato Faria, António Bagão Félix, José Pinto e José EduardoLISBOA Fonte Nova 1: 14h15, 16h45, 19h15 e 21h45; 6ª e sáb. também às 00h30; King Triplex 3: 14h15, 16h45, 19h15 e 21h45; 6ª, sáb. e 2ª também às 00h15; Monumental/Saldanha 6: 11h30, 13h40, 15h50, 18h, 20h10, 22h20 e 00h30; Mundial 2: 14h15, 16h45, 19h10 e 21h45; PORTO AMC: 14h, 16h30, 19h25, 21h55 e 00h50; Charlot: 14h15, 16h45, 19h15 e 21h45; 6ª e sáb. também às 00h15; Passos Manuel: 14h30, 17h, 19h30 e 22h.