A primeira vaga
Entre bombeiros, carteiros, distribuidores de tabaco, estudantes e agentes de seguros há três andorranos que são futebolistas. Os únicos profissionais numa selecção que até já enfrentou o Brasil e a França. E que encontraram em clubes da Madeira a oportunidade de se afirmar. A intenção é que outros lhes sigam os passos.
O futebol de Andorra, tão pequeno como este principado situado nos Pirenéus, tornou-se este ano um bem de exportação. Três jogadores, os únicos profissionais do futebol andorrano, vivem e jogam na ilha portuguesa da Madeira. A ideia era fugir ao amadorismo da Liga de Andorra: até a mais forte equipa daquele país preferiu alinhar entre os mais fracos de Espanha. Aqui se conta como Juli Sánchez, Justo Ruiz e Toni Lima chegaram aos relvados madeirenses. Em nome próprio, mas também de uma selecção acabada de nascer.A razão que os levou a "evadirem-se" do futebol andorrano é mais que óbvia. O campeonato de Andorra integra dez equipas numa divisão única e não há um único futebolista profissional em qualquer delas. Os mais ambiciosos procuraram melhor rumo na formação mais forte do país, o FC Andorra, que compete na Liga espanhola. A esta equipa deve a selecção a semente, lançada através de uma escola de iniciação de futebol, mesmo antes de existir a Federação de Futebol de Andorra (nascida em 1994 e reconhecida pela FIFA dois anos depois). Mas se até há três ou quatro anos ainda era possível viver só do futebol no FC Andorra, tal foi-se tornando inviável e, finalmente, impossível na época passada, quando a equipa desceu da II Divisão B para a III Divisão espanhola. "Tornou-se mais que evidente, nestes últimos três anos, que ninguém conseguiria viver apenas do futebol, se ficasse no FC Andorra", afirmou Justo Ruiz, o médio andorrano que o União da Madeira (II Divisão de Honra do campeonato português) contratou por um ano no último defeso. No final da temporada passada, quando terminava o seu contrato com o clube espanhol UE Figueras, da II Divisão B, e olhando para os 29 anos que o bilhete de identidade lhe acusava, Justo já se ia conformando com a ideia de voltar para o futebol do principado. "É lá que tenho a minha casa e tudo indicava que iria regressar. Ponderava então ir, talvez, para o FC Andorra, onde joguei durante três anos, e começar à procura de trabalho tal como todos os outros jogadores andorranos."Coube ao destino trocar as voltas a este espanhol, nascido em Victoria e que este ano adquiriu a nacionalidade andorrana através do casamento. Ou antes, coube ao olho vivo de Manuel Rodríguez, o canário que dirige a Escola Nacional da Federação de Futebol de Andorra (FFA) e que desempenha também as funções de adjunto do seleccionador, o brasileiro Manoel Miluir, que já fez trabalho de muitos anos nas escolas do Sporting. Conhecido pelo diminutivo de "Tonono", Manuel Rodríguez é um daqueles homens do futebol que "conhece toda a gente em todos os sítios" e, por isso, serve amplamente os propósitos da selecção de Andorra, desejosa de fazer subir o nível competitivo dos seus jogadores. Nesse sentido, "Tonono" tudo fez para abrir as portas dos clubes estrangeiros aos pilares da equipa representativa do principado, sabendo o que implicaria submeter jogadores como Justo ao baixo nível competitivo do campeonato andorrano. E encontrou resposta em Portugal. "O 'Tonono' entrou em contacto com Rui Mâncio [à data treinador do União da Madeira] e, poucos dias depois, encontrámos-nos os dois em Barcelona. Sentámos-nos a uma mesa para conversar e depressa chegámos a acordo", recordou Justo Ruiz. "Esta é a minha grande oportunidade. Um jogador acalenta sempre a vontade de jogar numa divisão mais alta e sei que isso, para mim, tem que acontecer a curto prazo. A vinda para Portugal permitiu-me vislumbrar essa hipótese".Para Justo, estar no União da Madeira é, muito provavelmente, uma das últimas oportunidades que tem para ir mais longe, depois de já ter jogado pela selecção espanhola, em sub-16 e sub-21, ao lado de grandes estrelas como Luis Enrique, Guardiola e Abelardo. O mesmo acontece com o líder da selecção andorrana, o defesa Antonio Lima, de 28 anos, que o União contratou também no Verão passado, depois de Rui Mâncio ter assistido - a convite de 'Tonono' - ao jogo entre as selecções de Andorra e do Brasil (um encontro de preparação da equipa "canarinha" para o Mundial). "Na altura tinha outras opções, mas as referências que tinha da Madeira e do futebol português eram muito boas", recordou Toni Lima, refutando também qualquer possibilidade de alinhar por um clube de Andorra, onde reside há cerca de 20 anos. "Não há outra solução, nem para os jogadores, nem mesmo para as intenções de crescimento da selecção. Estamos a falar de um campeonato de amadores, de gente que vai jogar futebol depois do trabalho, de dez equipas que se treinam e jogam todas no mesmo estádio, um pequeno campo com lotação para pouco mais de mil espectadores. Até os andorranos gostam mais do campeonato espanhol que do campeonato de Andorra", explicou este futebolista igualmente nascido em Espanha e naturalizado andorrano.Esta tentativa de assegurar um bom nível competitivo às peças fundamentais da selecção andorrana ganha uma clareza ainda maior quando se trata de jovens valores. Para estes, tudo está ainda a começar. E Juli Sánchez, contratado em Julho pelo clube madeirense Camacha (da II Divisão B) é outro exemplo da estratégia concertada pela selecção do pequeno país pirenaico. "Andorra precisa de colocar os seus jogadores em clubes que lhe garantam um nível competitivo mais elevado e profissional", explicou o treinador do Camacha, João Santos. Contactado por 'Tonono', o técnico do clube da Madeira mostrou-se sensível às necessidades andorranas. "Foi-nos feita uma abordagem para saber se estaríamos interessados em apoiar o projecto deles e, no caso particular de Juli, se quereríamos testar as suas capacidades de se afirmar no nosso futebol", contou João Santos.Tratou-se portanto de uma espécie de protocolo firmado entre as duas instituições. "É um projecto de cooperação e de amparo em termos profissionais. Se Juli tiver sucesso, que é o que se espera, também o clube pode tirar proveito disso", salientou o treinador do Camacha. Todos têm presente que Juli é um jogador que está a evoluir no panorama europeu. E quando se tem no plantel um futebolista que já teve de enfrentar a marcação de Roberto Carlos no meio-campo brasileiro e que já jogou contra os franceses campeões do mundo, é natural que se comece a exigir muito. Muito mais. "As exigências que recaem sobre o Juli são muitas. Ele é um jogador internacional, que evolui nas montras europeias do futebol", sublinhou João Santos.A intenção dos responsáveis pela selecção andorrana é clara e tornou-se urgente, sobretudo perante a ameaça de a Liga espanhola fechar definitivamente as portas à participação de equipas de Andorra. E tal não é de todo recusado pela própria FFA. Os dirigentes depressa perceberam que o caminho não vai pela integração de uma equipa do país num outro campeonato. Mas antes pela exportação "peça-a peça" dos seus mais talentosos futebolistas para clubes que lhes dêem algo mais do que o limitado campeonato de Andorra pode dar. Este é só o começo.