O cinema resgatado por Godard

"Histoire(s) du Cinéma" é uma operação de resgate, pela memória do cinema e do século que o acompanhou, cheia de pedaços de filmes que Jean-Luc Godard amou. Quatro horas e meia de revolução em imagens e sons, disponíveis agora em Portugal.

Imagens do cinema e do mundo, diálogos de filmes, excertos de música e citações literárias foram sendo justapostas, baralhadas e fundidas ao longo de dez anos por um visionário louco, Jean-Luc Godard. O desmesurado resultado, "Histoire(s) du Cinéma", pode finalmente ser adquirido em Portugal, numa caixa com quatro cassetes vídeo VHS PAL editadas pela Gaumont, donde constam os oito episódios da série - "Toutes les Histoires", "Une Histoire Seule", Seul le Cinéma", "Fatale Beauté", "La Monnaie de L'Absolu", "Une Vague Nouvelle", "Le Contrôle de L'Univers" e "Les Signes Parmis Nous" -, já disponíveis na loja FNAC do Colombo.Perante a impressionante torrente de imagens e sons que ocupam 4h24 de fita magnética, não se pode deixar de pensar em Noé e na mítica Arca. A amplitude e a urgência do projecto começa aí: "Histoire(s) du Cinéma" trata-se de uma operação de resgate, pela memória do cinema e do século que o acompanhou. Portanto, está cheio de pedaços de filmes que Godard amou (realizados por Renoir, Dreyer, Hitchcock, Ophuls, Murnau, Lang, Eisenstein, Welles, Rossellini...), mas também de imagens da História, onde pontuam as figuras de Hitler e Staline. Fábricas de sonhos e pesadelos, o cinema e a ideologia confundem-se. E contam-se um ao outro em "Histoire(s) du Cinéma".Recusando o academismo da proposta historicista organizada através de uma cronologia linear, o cineasta faz coincidir a História do cinema com a multiplitude de "petites histoires". Aliás, à semelhança daquele que tem sido desde sempre o seu método de trabalho: primeiro fragmenta e descontextualiza, depois reúne os pedaços soltos e refaz com eles um fluxo de renovados sentidos. Colocando em paralelo a história das vidas do produtor Irving Thalberg e de Lenine, estabelece uma série de surpreendentes conexões entre Hollywood e a União Soviética, entre esplendor e declínio do cinema americano e do comunismo.É um exemplo, e há muitos mais para quem os quiser encontrar. No entanto, é o próprio filme que recusa a obrigatoriedade do sentido único e nos empurra para uma dimensão quase exclusivista de entendimento(s). Ou seja, no interior de "Histoire(s) du Cinéma" está sempre salvaguardado um lugar diferente para cada virtual espectador. As histórias que nascem dos incessáveis cruzamentos entre as várias imagens e sons, exigem serem trabalhadas pela cultura, memória e pelos próprios circuitos lógicos de quem as vê. Na palavra "histoire", Godard retém a sílaba do meio - "toi" - e assim, tratando por "tu" o seu interlocutor, explicita que a história pertence tanto a quem a ouve como a quem a narra. No limite, o cinema (mas já nem sabemos se isto ainda é cinema...) nunca tinha ido tão longe ao tentar ser uma máquina de pensamento. "Histoire(s) du Cinéma" não é um documentário, nem sequer um ensaio feito com imagens e sons - é uma câmara de ressonância para a epistemologia. Nesse sentido, é um projecto absolutamente revolucionário este que dá por findo o século no campo das artes, ao proporcionar o livre arbítrio de associações racionais ao receptor da obra.Se a revolução pressupõe a novidade, também convoca a morte. E a morte é nuclear em "Histoire(s) du Cinéma", impressionante obra de luto, em que todos os materiais surgem rodeados de uma aura espectral, pairando num limbo sem tempo, que decompõe e transforma os movimentos. O primeiro século do cinema e o vigésimo da História - mas também o anterior, o das frases de Flaubert e do pontilhismo de Seurat - servem de pretexto para um desfile de fantasmas. À sua maneira, "Histoire(s) du Cinéma" é um filme fantástico - mortos-vivos vampirizam-se mutuamente - e , claro, um belíssimo musical, um poderosa sinfonia para os sentidos. Em Godard, e particularmente neste caso, a poesia disputa o lugar à razão. O trabalho de sapa feito pelo espectador, lidando com um sobrecarga de informação e de referências, tende várias vezes para o curto-circuito.Mas mesmo aí - sobretudo aí -, quando perde o fio à meada e flutua na "saturação de signos magníficos que se banham na luz da sua ausência de explicação" (citação de Manoel de Oliveira a propósito do cinema), "Histoire(s) du Cinéma" consegue deslumbrar pela beleza intensa das suas formas e da sua música. Beleza fatal, como reza um dos episódios. Fundidos estarrecedores e um trabalho genial sobre as cores, texturas, ritmos e sons. A um nível estritamente sensorial, é quase um "big bang" cósmico, um (re)começo mítico. A manipulação superlativa da montagem decompõe beleza e horror como uma trituradora, mas deixa quase intacta a sequência de um filme: a fuga de barco dos meninos de "A Sombra do Caçador", de Charles Laughton. Regressado às origens prometidas e sonhadas pelo cinema, avança agora o cineasta, figura mais que nunca solitária, num barco cheio de imagens pelo rio fora. Aonde irão desembocar, ele, o cinema e as suas histórias?

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