Quem se esconde atrás de Pombal?
Conhecia-se a história de Lisboa pombalina através do olhar de José-Augusto França. Mas pouco se sabia da tradição urbanística portuguesa que possibilitou a sua pronta reconstrução após o terramoto de 1755. O arquitecto Walter Rossa publicou agora a sua tese de mestrado que permite vislumbrar como tudo aconteceu e explicar Lisboa "além da Baixa".
Em 1991, o arquitecto Walter Rossa defendia a sua tese de mestrado na Universidade Nova de Lisboa (U. N. L.) sobre os planos urbanísticos para a cidade que antecederam a visão pombalina e o traçado da capital pós-terramoto. O desafio era ambicioso. Procurava não só compreender as bases que estariam por detrás do pensamento iluminista que possibilitou a reconstrução mas também esboçar um perfil adequado dos homens nela envolvidos. Qual o verdadeiro protagonismo de Manuel da Maia, o estratega da Baixa pombalina? Em que tradição se formara Eugénio dos Santos, que a desenhou? Quem era Carlos Mardel, esse estrangeiro que desenhava primorosamente e que lhe deu grandiosidade? Uma certeza animava Walter Rossa: Lisboa de Pombal não poderia ter acontecido sem antecedentes. Existiria, portanto, uma tradição urbanística entre os engenheiros militares portugueses e uma visão anterior para a capital que norteou as decisões tomadas na época de Sebastião José de Carvalho e Mello. Walter Rossa encontrou então um título sugestivo para o resultado da sua investigação: "Além da Baixa, indícios de planeamento urbano para Lisboa setecentista" e que só agora, passados sete anos, é publicada. A iniciativa deveu-se ao Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) que assim divulga junto do público uma obra que se encontrava apenas disponível para os investigadores.Mas, afinal, que Lisboa se define para "Além da Baixa"? As intenções são justificadas pelo próprio autor: "O título explica um pouco o livro. Tento não falar no exemplo específico da Baixa, que foi tratada por José-Augusto França, e em termos cronológicos recuo um pouco mais, ao tempo de D. Pedro I e de D. João V. Passados 30 anos sobre o trabalho pioneiro de José-Augusto França, que estudou a face mais visível do urbanismo lisboeta do século XVIII, os estudos na Escola por ele próprio fundada [ Departamento de História da Arte da U. N. L.] permitiram-nos aproximar dos antecedentes. Pode residir aqui o interesse desta minha leitura". O historiador José-Augusto França tinha já reconstruído em "Lisboa Pombalina e o Iluminismo", de 1962 - obra incontornável para a moderna historiografia de arte portuguesa -, a complexidade do processo urbano que tornou Lisboa única. Mas não foi esta operação gigantesca e excepcional que encantou Walter Rossa. Inicialmente, a sua atenção foi despertada pela análise do bairro operário das Amoreiras (1759), uma intervenção a uma escala menor e mais contida, ampliando o seu percurso até ao resto da cidade."Como arquitecto sempre me interessei pela arquitectura de série como a que encontramos no bairro das Amoreiras, uma arquitectura menos requintada, pois é com ela que se faz cidade. Quando comecei a tentar perceber as opções de implantação do aqueduto [construído por D. João V] e dos seus pontos de abastecimento, apercebi-me que essa obra lançada meio século antes do próprio bairro obedecia a uma estratégia de expansão da cidade para ocidente e para a qual, entre outros equipamentos, chegou a estar pensado o paço real e a patriarcal".A conquista a ocidente a que corresponde a edificação do aqueduto e de que fala Walter Rossa coincidia com a marcação dos limites da cidade, anterior a Pombal. Essa expansão aproveitava o projecto de uma primeira linha fortificada do tempo da Restauração, que foi perdendo gradualmente pertinência enquanto tal mas que viria a definir uma circunvalação de Alcântara a Santa Apolónia já no período liberal (século XIX).Mas são as reformas urbanas contemporâneas a D. João V que demonstram já uma intervenção concertada: alargamento das ruas tornando-as circuláveis por carruagens; normalização dos alçados de algumas vias; calçamento dos pavimentos ou limpeza e até demolição de certas portas da muralha fernandina - caso das portas de Santa Catarina, ao Chiado - para criação de praças. Essas reformas queriam monumentalizar a cidade, numa interpretação da estética barroca que não prescindia da "pompa, da festa e do desfile", como clarifica Walter Rossa. "O terramoto acabou por precipitar essa reforma urbana, em gestação desde o reinado de D. João V".Outro dos pontos fundamentais da investigação de Walter Rossa prende-se com a valorização do contributo individual de cada um dos protagonistas que ajudaram a reconstruir Lisboa. "Manuel da Maia, de quem praticamente não se conhecem desenhos, é quem define as opções tomadas no plano pombalino e por isso pode-se afirmar que é o grande urbanista lisboeta do século XVIII". Como segundas figuras, surgem inevitavelmente Eugénio dos Santos e Carlos Mardel. Ao primeiro competiu executar o plano segundo as instruções de Manuel da Maia. Quanto a Mardel, os seus dotes artísticos foram utilizados como um trunfo contra a influência que Ludovice, o arquitecto de Mafra, tinha conquistado junto de D. João V. O perfil de Mardel é então traçado por Walter Rossa: "É talvez o mais arquitecto ou artista de todos. Desenhava bem e é quem dá requinte ao desenho da Praça do Comércio". Percebe-se que neste conflito entre os homens próximos de Manuel da Maia e Ludovice se fixou uma nova ordem, cujo reflexo determinou a orientação urbanística que iria prevalecer em Lisboa. E que se pode sintetizar como a vitória da tradição, como esclarece Walter Rossa. "Existe uma escola de urbanismo e arquitectura militar de forte tradição portuguesa, activa desde o século XVI em todo o Império, respondendo a solicitações muito diversas. Num momento de crise, como o terramoto, foi a escolha óbvia para a resolução do problema."