Reciclar é bom, mas reutilizar seria ainda melhor

Retalhistas deram passos importantes no campo da energia e apostam em embalagens mais recicláveis e com menos plástico desnecessário. Agora, é urgente que abracem o conceito da reutilização.

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PP - 22 FEVEREIRO 2022 - PORTO - AJUDAR O PLANETA HIPERMERCADO CONTINENTE Paulo Pimenta

Sim e não. Existem cadeias de distribuição a fazer um caminho bastante positivo no que toca à adopção de tecnologias de arrefecimento amigas do clima. As iniciativas de combate ao desperdício alimentar e ao plástico desnecessário em embalagens também estão presentes nas campanhas de muitos grupos retalhistas – mas há ainda no sector uma grande resistência à reutilização.

“A melhor solução é quase sempre a reutilização, não há volta a dar. Mas os retalhistas não gostam muito de reutilizar, estão muito focados na reciclabilidade e tentam evitar tudo o que os obrigue a alterar muito a forma como funcionam. Isto, porque adoptar recipientes reutilizáveis nas diversas gamas de produtos embalados implica muitas adaptações em práticas e processos”, explica Susana Fonseca, da associação ambientalista Zero.

Embora existam exemplos isolados de boas práticas no sector – é o caso dos garrafões de água reutilizáveis do Pingo Doce (ver reportagem), por exemplo, e das caixas para produtos de charcutaria ou take away nas lojas Continente –, a preferência recai sobre materiais que possam ser recicláveis ou feitos, eles próprios, de materiais reciclados.

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Caixas reutilizáveis do Continente Paulo Pimenta

“Estamos a dar os primeiros passos no campo da reutilização. Fomos os pioneiros, em 2020, ao disponibilizar caixas reutilizáveis nos take-away para uso dos clientes no Continente. É uma área na qual estamos a trabalhar e a tentar perceber quais são os melhores modelos e em que medida eles interferem nas nossas operações”, explica Mariana Pereira da Silva, directora de sustentabilidade da Sonae MC, que agrega a rede de retalho alimentar da Sonae SGPS (que também é proprietária do PÚBLICO).

A aposta na redução, também relevante, já começa a ser mais comum no design ecológico das embalagens de marcas próprias. O Lidl, por exemplo, efectuou alterações nas cápsulas de café, permitindo uma poupança de cerca de 74 toneladas de plástico por ano, segundo uma nota enviada ao PÚBLICO. Reciclar é bom, mas reduzir e reutilizar são práticas ainda melhores.

A ilusão de um consumo sustentável

A associação Zero defende que é urgente que o sector abrace a sério a reutilização. Isto, porque o reciclável, ainda que sempre preferível ao descartável, também traz desafios importantes. Um deles é que a existência de embalagens plásticas recicláveis não é, por si só, uma garantia de que estas acabarão no ecoponto. O primeiro relatório do Pacto Português para os Plásticos (PPP) mostrou que em 2019 apenas 36% das embalagens de plástico colocadas no mercado português foram recicladas. Além disso, quando se substitui o plástico pelo papel, podemos estar a transmitir ao consumidor a ilusão de um consumo sustentável.

“O copo de papel que substitui a versão em plástico não é feito só de papel, ele possui uma película que está sujeita às mesmas restrições que o plástico. Ou então apresenta substâncias químicas que asseguram a impermeabilidade do recipiente. Muitas destas embalagens aparentemente inócuas colocam problemas, porque contêm substâncias consideradas persistentes, ou seja, que não se degradam e se podem acumular no solo. Não há um verdadeiro ganho, ao substituir o plástico pelo papel, se, à boleia, vierem substâncias que acabam por aumentar a carga poluente”, explica Susana Fonseca.

Se no capítulo das embalagens o cenário “ainda está longe do desejável”, no que toca aos sistemas de refrigeração há “mudanças encorajadoras”, considera Francisco Ferreira, presidente da Zero e professor na área de ambiente na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

A Zero contribuiu para um relatório internacional que avaliou como as cadeias de distribuição de 37 países estavam a aplicar o regulamento europeu de 2014 (número 517/2014). Esta norma controla o uso de determinados gases fluorados com efeito de estufa e obriga a uma conversão, progressiva, mas em larga escala, para tecnologias mais amigas do ambiente até 2030. O relatório europeu, apresentado pela Agência de Investigação Ambiental em Londres em 2017, revelou que retalhistas portugueses como a Sonae MC e a Jerónimo Martins estavam “no bom caminho”.

“Queríamos acompanhar a transição dos sistemas de refrigeração que recorrem a hidrofluorocarbonetos (HFC) – que têm um peso grande nas alterações climáticas – para sistemas que utilizam fluidos refrigerantes mais amigos do ambiente (como a amónia, o gás carbónico e o propano). Verificamos que muitos supermercados conseguiram acomodar esta mudança, achamos que é uma história de sucesso”, acrescenta Francisco Ferreira.

O exemplo da luz e do frio

As mudanças realizadas no sector incluem a cobertura dos telhados com painéis fotovoltaicos, o fecho de todas as zonas refrigeradas com portas transparentes e a gestão da iluminação. Muitos dos supermercados que são construídos de raiz já têm em conta estas adaptações em prol do ambiente. A distribuidora espanhola Mercadona, que chegou a Portugal em 2019 e conta hoje com 29 lojas no país, equipou as novas unidades com 350 painéis fotovoltaicos. Isto, segundo uma nota do grupo enviada ao PÚBLICO, representa uma poupança de cerca 15% na factura de electricidade em cada um destes espaços comerciais.

“Muitos supermercados já colocaram portas nas zonas frias, embora haja excepções como o Lidl. Quanto à iluminação, identificamos supermercados com clarabóias onde a intensidade da iluminação é regulada por sensores. Quando o céu está nublado, a luz artificial é reforçada. Quando as nuvens passam, a intensidade das luzes diminui. É mais um exemplo de boa prática”, acrescenta Francisco Ferreira.

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Sacos reutilizáveis nos supermercados Paulo Pimenta

A eficiência energética é atractiva no sector, porque pode tornar os retalhistas mais competitivos, acredita Ricardo Bessa, investigador sénior do INESC TEC no centro de sistemas de energia. “A descarbonização já é uma realidade incontornável. É uma questão de imagem, mas também é uma oportunidade: há uma justificação económica ligada à competitividade”, avalia Ricardo.

O cientista do INESC TEC está a coordenar, desde 2019, uma iniciativa-piloto em 12 lojas do Continente, localizadas em diferentes pontos do país, no âmbito do projecto europeu de modernização eléctrica Interconnect. O objectivo é demonstrar os benefícios de uma gestão flexível do consumo de energia nos sistemas de refrigeração e de carregamento de veículos. Pode-se, por exemplo, baixar as temperaturas nas arcas congeladoras num período em que o custo da energia é mais barato para, depois, numa janela de pico de consumo, suspender a refrigeração.

“Nós temos um algoritmo regido por inteligência artificial que lê um conjunto de variáveis. Recolhemos informação relativa ao funcionamento das centrais de frio, à temperatura, à frequência de abertura das montras pelos consumidores, aos horários de funcionamento e à própria temperatura exterior à loja. A ideia é conseguirmos perceber como podemos gerir a flexibilidade do consumo”, explica Ricardo. O projecto ainda está em curso e deve estar concluído em 2023.

Bolo de banana, pão e café

A exemplo do que sucede no campo da energia, multiplicaram-se as estratégias para evitar que comida que ainda pode ser consumida vá para o lixo. Da redução do preço dos produtos perto do fim do prazo à parceria com plataformas de combate ao desperdício (como a Too Good To Go), passando pela doação solidária de refeições a associações solidárias, há várias iniciativas em prática no sector retalhista.

O grupo Auchan, por exemplo, desenvolveu um bolo de banana vegano que permitiu aproveitar perto de uma tonelada de bananas demasiado maduras ou fora de calibre, entre Janeiro de 2020 e Julho de 2021. O produto, segundo uma nota enviada ao PÚBLICO, evitou a emissão de 2,3 toneladas de CO2 no mesmo período. Esta lógica de aproveitamento permitiu ainda que 45 toneladas de pão menos fresco fossem utilizadas para a culinária e, ainda segundo a mesma nota, quase duas toneladas de borras de café seguissem das cafetarias Auchan para produtores locais, com o intuito de serem reutilizadas como fertilizante ou repelente de pragas.

A venda a granel também tem um papel positivo, uma vez que permite que os consumidores não comprem mais do que aquilo que necessitam e, ao mesmo tempo, abre caminho para a redução ou reutilização de embalagens. “Desde 2017 equipamos algumas das nossas lojas portuguesas com dispensadores de produtos biológicos a granel como medida de redução de embalagem e combate ao desperdício alimentar”, refere Fabrice Lachize, director da loja E.Leclerc de Lordelo, em Guimarães. O caminho a percorrer no caminho da sustentabilidade ainda é longo, mas a associação Zero não tem dúvidas da direcção a seguir: reduzir e reutilizar.

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