Autoridades do Iraque e Curdistão torturaram menores suspeitos de ligação ao Daesh

A organização Human Rights Watch entrevistou 29 actuais e ex-detidos, todos eles menores de idade, que relataram episódios de violência durante interrogatórios e julgamentos que não duraram "mais do que cinco ou dez minutos".

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Reuters/STRINGER

Autoridades do Iraque e do governo regional do Curdistão iraquiano detiveram, torturaram e acusaram menores suspeitos de ligação ao grupo extremista Daesh, acusou a organização Human Rights Watch (HRW) num relatório que divulgou nesta quarta-feira.

Segundo o relatório “’Todos têm de confessar’: Abusos contra crianças suspeitas de ligação ao Estado Islâmico no Iraque” - que completa um outro já divulgado a 8 de Janeiro -, centenas de crianças e adolescentes foram acusados de terrorismo por suspeita ligação ao grupo jihadista. Os processos, diz documento, foram "frequentemente baseados em acusações duvidosas e confissões forçadas, obtidas sob tortura”, sendo muitos dos menores condenados em “julgamentos feitos à pressa”.

“Crianças acusadas de ligação ao Estado Islâmico estão a ser detidas e frequentemente torturadas e processadas, independentemente do seu real nível de envolvimento com o grupo”, disse Jo Becker, directora para a defesa os direitos das crianças da HRW, citada num comunicado sobre o relatório.

“Esta abordagem radical e punitiva não é justiça e gera consequências negativas ao longo da vida para muitas destas crianças”, adiantou.

A Human Rights Watch calcula que, no final de 2018, as autoridades iraquianas e do governo regional do Curdistão tinham detidos 1500 menores por ligação ao Daesh.

Segundo o governo iraquiano, pelo menos 185 crianças estrangeiras foram condenadas a penas de prisão por acusações relacionadas com terrorismo.

A organização de defesa dos direitos humanos entrevistou, em Novembro, 29 detidos pelas autoridades do Curdistão por ligação ao Daesh, com idades entre os 14 e os 18 anos, familiares de oito outros detidos, activistas e advogados.

O relatório dá conta de falhas na identificação dos suspeitos, como o facto de terem o mesmo nome de alguém ligado de facto ao Daesh ou devido a denúncias de vizinhos feitas por questões pessoais, e na determinação do grau de envolvimento com os extremistas.

“Karim”, 17 anos, disse à HRW que foi detido na Primavera de 2017 porque o seu nome estava numa “lista de procurados”.

A maioria dos entrevistados pela HRW que admitiram uma ligação ao grupo justificou-a com a necessidade económica, a pressão do grupo ou da família, assim como com a fuga a problemas familiares ou a conquista de estatuto social. Alguns disseram ter trabalhado como guardas, cozinheiros ou motoristas.

“Salam”, 17 anos, disse que se juntou ao Daesh em Mossul em 2015, quando tinha 14, e que ganhava 65 mil dinares (cerca de 49 euros) por mês como cozinheiro. “Nunca quis lutar, por isso é que fiquei como cozinheiro".

Entre os inquiridos houve quem negasse um envolvimento pessoal, admitindo ter familiares que pertenceram ao grupo extremista.

“Sami”, também de Mossul, contou que deixou a escola aos 13 anos para trabalhar numa fábrica e que o seu único envolvimento com o Daesh foi frequentar na mesquita um curso de 15 dias sobre o Corão.

A HRW indica também que após a detenção muitos dos menores foram torturados para se conseguir uma confissão, adiantando que 19 dos 29 detidos pelo governo regional do Curdistão disseram ter sido alvo de tortura, como “espancamentos com tubos de plástico ou cabos eléctricos (…), choques eléctricos e posições de stress”.

“Tahir”, 17 anos, disse que os seus interrogadores lhe disseram: “Tens de dizer que foste do Daesh. Mesmo que não tenhas sido, tens de o dizer”.

"Karim" contou ter sido torturado e obrigado a confessar que fizera parte do grupo radical, bem como que os interrogadores lhe disseram que se negasse a confissão seria alvo de mais torturas.

Vários detidos pelas autoridades do Curdistão referiram terem dito a um juiz que a sua confissão tinha sido forçada através de tortura e que terão sido ignorados. A maioria dos inquiridos indicou não saber se teve advogado e que os seus julgamentos “não duraram mais que cinco ou dez minutos”.

Os detidos por suspeita de envolvimento com os jihadistas do Daesh temem ainda que o estigma com que ficam os torne vítimas de ataques ou leve a uma separação da sua família e comunidade.

Lembrando que “a lei internacional reconhece as crianças recrutadas por grupos armados principalmente como vítimas que devem ser reabilitadas e reintegradas na sociedade”, a HRW recomenda às autoridades do Iraque e do governo do Curdistão que “alterem as leis antiterrorismo para acabar com a detenção e julgamento de crianças" apenas pela adesão ao Daesh.

A organização de defesa dos direitos humanos pede ainda “a libertação de todas as crianças que não cometeram outros crimes” e o fim da tortura, assim como a responsabilização dos que a utilizaram.

“O tratamento cruel das crianças por parte do Iraque e do governo regional do Curdistão parece mais uma vingança cega do que justiça pelos crimes do Daesh”, disse Becker.