Em defesa de Rousseau
Identificar o conceito de “vontade geral” de Rousseau como uma tirania da maioria constitui um erro em toda a linha.
Há cinco anos, quando assumi a incumbência de encabeçar a lista do PS às eleições europeias, foi-me solicitada uma opinião acerca da personalidade de Paulo Rangel, à época o meu adversário mais directo. Recordo-me bem de ter então respondido, no contexto de um confronto político duro, que considerava o cabeça-de-lista do PSD como uma das principais figuras da vida política portuguesa, dotado de qualidades excepcionais de inteligência, cultura e preparação política.
O convívio que com ele mantive nos últimos cinco anos confirmou integralmente essa mesma avaliação. É por isso que estou particularmente à vontade para contestar recentes e reiteradas declarações suas. Primeiro numa entrevista e depois no seu habitual artigo de opinião publicado neste jornal, Paulo Rangel deduziu acusações contra Jean-Jacques Rousseau que não podem passar em claro.
Referindo-se ao conceito de democracia iliberal, teorizado e posto em prática por Victor Órban na Hungria, Rangel estabeleceu uma relação de identificação entre esse conceito e aquilo que designou como a democracia rousseauniana. Na longa entrevista, aliás extremamente interessante, que concedeu ao PÚBLICO no passado domingo, afirma o seguinte: eles, “os defensores da chamada democracia iliberal, são a favor da vontade da maioria e defendem que a vontade da maioria deve prevalecer sobre tudo. Neste sentido são quase rousseaunianos”. No seu artigo de terça-feira passada vai ainda mais longe e afirma: “Chama-se ‘democracia’ porque, à maneira de Rousseau, tem como único critério válido a regra da maioria”.
Rousseau nunca defendeu tal coisa. Preconizou mesmo uma tese absolutamente contrária à que Paulo Rangel lhe atribui. É verdade que de Benjamin Constant até Isaiah Berlin foi desenvolvida uma linha crítica do pensamento de Rousseau assente em ideias não muito distantes daquelas que Paulo Rangel agora recupera. Tais interpretações, contudo, assentam a meu ver numa incompreensão profunda do pensamento daquele que foi sem dúvida o maior pensador francês do Iluminismo europeu. A confusão surge em torno do conceito de “vontade geral”. Contrariamente ao que alguns autores posteriores e um certo senso comum procuraram fazer crer, o conceito de “vontade geral” não se identifica com o conceito da “vontade de todos”, e muito menos com o conceito de “vontade da maioria”.
Para Rousseau, a soberania popular é inalienável e indivisível, expressão absoluta da livre vontade do povo. Esta concepção, questionando a legitimidade, senão mesmo a possibilidade de qualquer mecanismo de representação política, percebido como forma de alienação da soberania popular, permite o surgimento de algumas suspeitas em relação à verdadeira natureza do conceito de “vontade geral”. Essas suspeitas, porém, podem ser rapidamente desvanecidas se olharmos com a devida atenção para o que Rousseau escreveu sobre o assunto.
Se é certo que ele fala de uma unicidade da vontade geral por oposição a um agregado de “fragmentos de vontades”, é também certo que ele se refere a essa vontade geral não como uma associação das múltiplas vontades particulares, mas antes como uma soma das diferenças entre as mesmas. Como recorda um dos principais intérpretes da obra rousseauniana, Alexis Philonenko, o filósofo genebrino dispunha de grandes conhecimentos de matemática e não ignorava a teoria do cálculo infinitesimal da autoria de Leibniz. A teoria da “vontade geral” corresponderia assim, no plano matemático, a uma soma das diferenças infinitamente pequenas, isto é, a um integral, por oposição ao conceito de “vontade de todos”, que resultaria da soma das múltiplas vontades particulares.
Rousseau coloca uma questão essencial nas sociedades democráticas: o cidadão só se afirma enquanto tal quando se consegue abstrair das suas paixões e dos seus interesses imediatos e quando, por um exercício de abstracção mental, logra atingir uma noção que releva mais da dimensão pública e menos da componente particular. Ora, isso não tem nada que ver com o princípio da maioria. Uma maioria, por mais ampla que seja, continua a exprimir uma posição particular. Uma ditadura da maioria nada tem que ver com a vontade geral. Pode mesmo constituir-se em oposição absoluta a esta última.
É certo que Rousseau, extraordinário teórico da modernidade democrática, não resolveu cabalmente muitas das aporias que ele próprio estabeleceu. É natural que assim tenha sucedido, dado o carácter inovador da sua reflexão filosófica e política. A sua teoria da “vontade geral”, assente numa radical fundamentação democrática, e como tal insusceptível de qualquer confusão com posteriores perversões totalitárias, contribuiu fortemente para a plena afirmação da modernidade política europeia. Pretender associá-lo a Órban, Erdogan ou Putin constitui uma monstruosa injustiça. Poder-se-á dizer que Rousseau não foi capaz de compreender o verdadeiro alcance das teorias da representação democrática. A sua concepção de uma soberania popular una e indivisível obstou a uma correcta apreciação desses mesmos mecanismos de representação. Essa crítica é justa e pertinente. Contudo, dessa incompreensão não pode resultar a ideia de que Rousseau aceitava o princípio da tirania da maioria. Pelo contrário, ele sempre se opôs tenazmente a tal tese.
Como referem correctamente Luc Ferry e Alan Renaut, e por paradoxal que possa parecer, foi o Abade de Sieyés quem melhor desenvolveu a teoria da “vontade geral” de Rousseau, provavelmente contra a intenção original do autor. Deslocando do povo para o Parlamento o princípio da soberania, Sieyés entendeu que era neste último âmbito que se poderia desenvolver um processo deliberativo capaz de apontar para o surgimento de uma verdadeira vontade geral. Esta nunca poderia ser percebida como a expressão da vontade particular de uma maioria, mas sim como o produto final resultante da contribuição de todos os parlamentares. Seria assim por analogia com a matemática, não o somatório de múltiplas vontades particulares, mas a emanação da soma de pequenas diferenças, o que remete, como já atrás já foi dito, para a teoria leibniziana do cálculo infinitesimal.
Em suma, identificar o conceito de “vontade geral” de Rousseau como uma tirania da maioria constitui um erro em toda a linha. Associar Rousseau a Putin, Erdogan ou Órban representa um insulto a um dos maiores pensadores da modernidade democrática. Tudo isto pode parecer de somenos importância, e talvez o seja para políticos com um grau de alfabetização doutrinária pouco mais que rudimentar. Não é o caso de Paulo Rangel, político reconhecidamente ilustrado. Estou certo que ele será o primeiro a compreender a pertinência e a verdadeira natureza da crítica que lhe dirijo. Sempre com estima e consideração.