“Não podemos deixar a nação para os populistas”
Historiador de Oxford, famoso pelos seus escritos sobre as transições democráticas no Leste sobre a Europa, conhecedor profundo da Alemanha, autor de obras de referência como Free World, History of the Present e In Europe’s Name – Germany and the Divided Continent, colunista habitual da imprensa britânica e europeia, Timothy Garton Ash integra a direcção do European Studies Centre do St. Antony’s College. Uma viagem à irracionalidade do “Brexit” e um olhar ainda não inteiramente pessimista sobre a Europa.
Timothy Garton Ash explica o caos em que caiu o seu país com o “Brexit”, com a coincidência entre um referendo mal pensado e o início da ascensão do populismo na Europa Ocidental. Acredita que ainda nem tudo está perdido: se o Reino Unido desistisse de sair, seria uma poderosa injecção de vitalidade na União Europeia. Compara a situação no seu país com a vaga de populismo. Mas chama a atenção para que a revolta das pessoas que se manifestam contra o sistema não é apenas resultante das desigualdades económicas, mas também da desigualdade do respeito. Ou da distância a que vivem hoje as elites politicas e os media – com os quais não se conseguem identificar. Acredita que a democracia liberal ainda tem uma oportunidade, desde que entenda que o liberalismo e a nação não são incompatíveis. Lembra a grande questão do nosso tempo: “Conseguimos aprender com a nossa História sem precisarmos de a repetir?”
A pergunta incontornável, pelo menos fora das fronteiras britânicas: como é que um país com a importância, a influência e a história do Reino Unido se deixa cair numa crise existencial profunda e num verdadeiro caos político?
Porque David Cameron decidiu fazer um referendo sem pensar no que isso implicava, precisamente no momento em que a vaga populista começava a varrer o mundo ocidental. Foi a combinação destas duas coisas, sobretudo coincidindo com o ponto alto do sentimento populista, que se vê hoje nos gilets jaunes em França, na AfD [extrema-direita] na Alemanha, na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Mas as consequências foram tão dramáticas também pela má preparação do referendo — que apenas exigia uma maioria simples. Há, depois, mais duas razões para a confusão em que estamos mergulhados. Uma deve-se à sucessora de Cameron, Theresa May, que lidou muito mal com o “Brexit”. A outra é porque o Parlamento está a fazer o seu trabalho. E esta é a boa notícia: o Parlamento britânico e a democracia estão a funcionar. Mas mantém-se o confronto entre estas duas lógicas democráticas: a lógica da democracia representativa no Parlamento e a lógica da democracia directa no referendo. É isto que está subjacente ao drama a que estamos a assistir.
Compreendo o que diz, mas há também uma tendência para procurar uma razão mais profunda na relação entre o Reino Unido e a Europa nas últimas décadas. Tem a ver com a história? Com a forma como olha para a Europa continental, que teve de salvar duas vezes?
Essas são as ilusões do determinismo retrospectivo — a tentação quase irresistível para dizer que o que aconteceu tinha de acabar por acontecer. Toda a gente se põe a olhar para trás, para a história e para a geografia e a dizer: bom, a Grã-Bretanha teve a Reforma no tempo de Henrique VIII, não fazia parte da Europa católica; teve um império e mais não sei quantas razões históricas. A questão é que nenhuma delas, em si próprias, nos teria tirado da Europa. Todas elas eram igualmente verdadeiras enquanto fizemos parte da União Europeia, nada mudou.
Claro que há alguns elementos específicos, a começar pela peculiar obsessão inglesa com uma soberania estritamente legal. Na realidade, o que vai acontecer é que vamos perder soberania real de forma dramática, ao mesmo tempo que ganhamos em soberania estritamente legal. Do meu ponto de vista, não são estes os factores decisivos, de maneira nenhuma. Os factores decisivos são, em primeiro lugar, a vaga populista, todo este descontentamento que se manifesta nas nossas sociedades — pessoas cujos salários não aumentaram, que se sentem ignoradas e desrespeitadas, e que assumiram esta forma particular de se exprimir. Em segundo lugar, a liberdade de circulação dentro da União Europeia teve um impacto particularmente grande na Grã-Bretanha, por nossa própria escolha, quando decidimos abdicar dos sete anos de período de transição depois do alargamento. Eu argumentaria que, se houvesse um líder diferente do Labour, alguém genuinamente pró-europeu, o resultado do referendo teria sido outro. Por isso, não devemos dar uma interpretação excessiva ao seu resultado.
Hoje, os dois grandes partidos do sistema político britânico estão profundamente divididos entre aqueles que querem continuar na Europa e os que querem sair. Jeremy Corbyn não é propriamente um entusiasta da integração europeia. Estaremos também perante uma crise do sistema político-partidário, idêntica ao que acontece noutros países europeus? Também os extremos políticos estão a ganhar terreno?
Eu diria que, em todo o mundo democrático, estamos a viver uma situação em que os partidos que existiam há dez anos deixaram de reflectir esta clivagem que se verifica hoje nas nossas sociedades. E cada sistema político responde de forma diferente. Na França, Emmanuel Macron pura e simplesmente destruiu os partidos existentes e criou algo de completamente novo. Na Alemanha, estamos a assistir a uma dramática fragmentação do sistema político — os Verdes já estão à frente do SPD, a AfD, o Die Linke. A resposta é a fragmentação. Na Áustria, o principal partido de centro-direita coligou-se com um partido populista. Mas, no Reino Unido e na América, o sistema de dois partidos é tão forte que as divisões atravessam os dois partidos. Cada um deles é, de facto, dois partidos. Hoje, na Grã-Bretanha, há ainda uma maioria liberal, mas essa maioria não está representada nem pela liderança do Partido Conservador nem pela liderança do Partido Trabalhista. Há uma maioria liberal não representada e é essa a razão para o que está a acontecer hoje no Parlamento. Os conservadores liberais, os trabalhistas liberais, os liberais nacionalistas escoceses e os liberais-democratas juntam-se num movimento que atravessa os partidos para pugnar por um “Brexit” soft ou por nenhum “Brexit”. E eu congratulo-me por isso.
Escreveu recentemente que o Reino Unido precisa de parar o relógio, respirar fundo, pensar a sério na situação que está a viver e voltar de novo ao povo. Muita gente defende esse caminho. É ainda possível? A oito semanas da data de saída oficial?
Só é possível se tivermos uma extensão do Artigo 50.º. Conversei com muita gente responsável da União Europeia e todos me disseram que, se o Reino Unido disser que quer ter um debate nacional e um voto que inclua a opção pelo Remain, dar-lhe-iam esse tempo. Há um problema legal importante, que são as eleições para o Parlamento Europeu, mas também há quem diga que há forma de resolver o problema através de um protocolo específico. Assumindo que isto pode ser feito, não vejo qualquer razão para não conseguirmos tempo para organizar um debate nacional como deve ser, com a ajuda de assembleias de cidadãos, propostas por Gordon Brown, realizando depois disso um referendo devidamente preparado. Esta é, de muito longe, a melhor opção.
Ainda não é certo que possa acontecer…
Nada é certo. Mas, de repente, se olhar para as casas de apostas, as probabilidades de isso acontecer estão a aumentar. Eu diria que a corrida hoje é, essencialmente, entre um “Brexit” hard e um segundo referendo. São as duas principais tendências.
Não vê os riscos de acabar por vencer a ala radical dos conservadores, que, no fundo, até preferia sair sem qualquer acordo?
Tudo é possível, mas essa probabilidade está a diminuir porque o Parlamento acabará por decidir pôr-lhe fim. O mais provável é que, confrontados com a hipótese de um segundo referendo, os defensores de um “Brexit” hard possam, no último momento, acabar por apoiar o acordo de Theresa May. Ela pode ainda ganhá-lo ou, então — e é este o outro caminho —, ela perde os hard brexiteers mas ganha o apoio de 100 ou 150 deputados da oposição, que acabarão por ir no sentido de um “Brexit” soft: União Aduaneira, Noruega-plus. As duas coisas ainda são possíveis.
Há, no entanto, uma coisa que me surpreende. Como é que um país como o Reino Unido está disposto a aceitar o estatuto da Noruega?
É um total disparate. Os nossos filhos e os nossos netos vão perguntar-nos: como é que foi possível serem estúpidos ao ponto de trocarem um Rolls Royce por um Fiat Punto, sem sequer receberem algum dinheiro de volta? Membros de primeira classe por membros de segunda? Fazer as regras ou sujeitar-se a elas, aceitando menos soberania do que a que temos hoje e sem capacidade para moldar as políticas europeias de forma significativa? É por isso que creio que é um disparate, o que não quer dizer que não aconteça. A política, por vezes, é assim mesmo. Benjamin Disraeli disse, magistralmente, que a Inglaterra era governada não pela lógica, mas pelo Parlamento.
Por ser tão obviamente estúpido, creio que acabará por não ser uma situação estável. O Reino Unido não é a Noruega e, por isso, não creio que se pudesse manter por 20 anos como uma espécie de “grande-Noruega”. Há gente que acredita que, nesse caso, voltaria a aderir. Não acredito nisso. Se olhar, por exemplo, para o que aconteceu com a Suíça, que quase aderiu à União Europeia com um apoio que se aproximou dos 50% — hoje as sondagens apenas registam 9% favoráveis a essa opção. Há uma dinâmica de divergência, que se deve em parte a não ser muito agradável estar de fora. Temo que se trate realmente do início de um afastamento entre o Reino Unido e a Europa, o que seria extremamente negativo não apenas para nós, mas para a União Europeia.
Olhando para o outro lado das negociações, a União Europeia teve sempre um objectivo: manter os 27 unidos e mostrar-lhes que sair era uma coisa muito complicada. Pode ter dado resultado, mas não é demasiado defensivo? Sobretudo quando se tornou difícil saber o que Berlim ou outras capitais pensam realmente sobre que Europa querem no futuro?
A unidade permanente dos 27 foi impressionante. Em particular, creio que é a primeira vez na história moderna em que a Irlanda foi mais poderosa do que o Reino Unido, justamente porque teve o apoio dos outros 26. E esta posição, de algum modo rígida … ainda que não convenha exagerar, porque a União Europeia fez concessões significativas, por exemplo, permitindo que todo o país se mantivesse na União Aduaneira por causa do backstop. Mas esta unidade, que foi constantemente sublinhada, revela a força mas também a fraqueza da UE. Força, porque a posição negocial foi incrivelmente forte. O Reino Unido apontou uma pistola à própria cabeça, ameaçando matar-se se a Europa não lhe desse um bom acordo. Mas também fraca, porque todos nós sabemos que há diferenças significativas entre os países-membros e é isso que a obriga a ser inflexível — porque, a partir do momento em que há uma brecha na muralha, essa brecha rapidamente se multiplica por muitas. Mas é o que é. Além disso, aquando da negociação do tratado, nunca ninguém imaginou que o Artigo 50.º viesse a ser utilizado e, por isso, ninguém pensou sobre ele com cuidado. Mas o processo em duas fases foi muitíssimo vantajoso para a União, porque conseguiu este acordo de saída, mas, em contrapartida, o Reino Unido não tem qualquer ideia sobre qual será a futura relação com a UE.
Ninguém pode dizer, no entanto, que na Europa as coisas estejam a correr bem. A ascensão do populismo e do nacionalismo em quase toda a parte é um problema sério – talvez o mais sério – contagiando os países da Europa Central, a Itália, a Áustria ou a França. A eleição de Macron foi recebida como a esperança de um novo impulso europeu e está hoje a braços com uma enorme crise interna. A Alemanha parece mergulhada numa espécie de imobilismo. A crise europeia é fundamentalmente este combate entre a democracia liberal e estes novos movimentos? Como é que isto aconteceu tão depressa?
Houve duas ou três coisas que acabaram por se conjugar. A primeira é que estamos a viver à escala mundial aquilo a que chamo uma contra-revolução antiliberal — contra uma versão particular do liberalismo, e de um capitalismo globalizado e financeiro, que triunfou depois de 1990 e que produziu os seus próprios anticorpos. É um fenómeno geral. Há dois dias, estava em Paris a ver um documentário sobre os gilets jaunes e o que eles diziam podia ser dito por gente no Norte da Inglaterra ou no Sudeste mais pobre da Polónia ou na Alemanha de Leste — têm as mesmas preocupações. Depois, há um conjunto de questões que têm a ver com a forma como a União Europeia se desenvolveu. Por exemplo, as questões ainda não resolvidas da zona euro, mas também o problema do próprio sucesso da UE — hoje, uma ou duas gerações de europeus tomam aquilo que foi conseguido com a integração como garantido. O facto de poder acordar em Lisboa, num sábado de manhã, e resolver apanhar um avião para o outro lado do continente, ficar lá, encontrar um emprego — tudo isto é hoje olhado como normal. Finalmente, com a excepção de Macron, não temos líderes com qualidade.
Mas devo dizer que não estou demasiado pessimista. É o fim de Angela Merkel? Mas isso também pode ser visto como uma oportunidade. Se, como me parece inteiramente possível, for viável uma coligação CDU-Verdes que, de acordo com as actuais sondagens, pode perfeitamente acontecer, teríamos um Governo alemão assente em dois partidos fortemente pró-europeus, com uma nova líder, Annegret Kramp-Karrenbauer, que vem do estado federado do Sarre, que fala francês fluentemente e instintivamente pró-europeia. Teremos também novos líderes das instituições europeias e do BCE. Há a possibilidade de, no próximo Outono, podermos pensar de outra maneira. E se o meu sonho pudesse ser realizado com um referendo no qual o meu país votasse a favor do Remain, isso seria uma poderosa injecção de vitalidade para a própria União Europeia.
Mas também ninguém estava à espera que precisamente na Alemanha, de todos os sítios possíveis, emergisse um partido de extrema-direita com a força da AfD — hoje a terceira força política no Bundestag. É uma situação completamente inédita desde o fim da II Guerra. Quer dizer alguma coisa. É só a questão da imigração?
Que isso tenha acontecido apesar dos tabus imensamente poderosos sobre o fascismo que se mantêm na Alemanha, é, de facto, muito preocupante. Mas, mais uma vez, há uma razão específica que considero muito importante: há sempre este risco quando há um Governo de “grande coligação”, que acaba sempre por fortalecer os extremos. Aquando das últimas eleições na Alemanha, escrevi várias vezes que era um erro fazer uma terceira “grande coligação”. É má para o SPD e é má para a democracia. Hoje posso dizer: olhem para o que aconteceu. Mas também há outra razão: é na Alemanha de Leste que a AfD é forte e há razões específicas por trás desta ascensão. Mas não há qualquer dúvida de que é muito preocupante, particularmente porque empurra a CDU, e especialmente a CSU [centro-direita], para a direita.
Há menos de dois anos, a imprensa alemã saudou a eleição de Macron com grande entusiasmo, sublinhando que finalmente a Alemanha tinha em Paris um parceiro à sua altura. Acreditámos que o motor franco-alemão poderia voltar a funcionar. Mas nada aconteceu.
Eu estava em Aachen em Maio passado, quando Macron recebeu o Prémio Charlesmagne, e a resposta de Merkel ao seu discurso foi quase insultuosa. Creio que isso pode dever-se a duas coisas. À sua própria personalidade, mas também ao facto de a Alemanha estar bastante bem, de os alemães estarem muito bem, o que os leva a não sentirem a urgência da crise europeia da mesma maneira que se sente em Portugal, na Espanha ou na Itália e na França. A outra coisa importante é que não há apenas a França e a Alemanha nesta história. E a Espanha? E a Itália? E a Polónia? Se houvesse um ou dois dos outros grandes países que apoiassem uma agenda de reformas europeia, seria uma outra história. Mas a Itália é parte do problema e não parte da solução.
E a Polónia a mesma coisa...
Sim. Mas não podemos perder de vista as típicas mudanças de disposição europeias. Há anos que observo estas mudanças de humor quase maníaco-depressivas — do europessimismo ao euro-optimismo. Pode ser que, daqui a alguns anos, tenhamos mudanças de Governo em alguns países, novos líderes, uma economia mais forte, e que nos sintamos mais animados. Mesmo assim, penso que estamos perante causas históricas mais profundas que nos fazem sentir mais pessimistas. Isso, sem dúvida.
Conhece muito bem a Alemanha. A crise financeira e depois a crise do euro foram aproveitadas por Berlim para afirmar o seu poder na Europa. Mas, ao mesmo tempo, os alemães não parecem disponíveis para pagar o preço da liderança. Os EUA sempre pagaram um preço elevado por liderarem o mundo — o problema agora é que Trump não quer pagar esse preço...
A Alemanha não queria abdicar do marco alemão, mas François Mitterrand e Giulio Andreotti disseram a Helmut Kohl que ele teria de cumprir o compromisso de abandonar a sua moeda se queria ter apoio para a unificação alemã. Isso está documentado largamente. A Alemanha alinhou relutantemente e continua a ser ainda mais relutante em admitir que foi o país que maior proveito retirou do euro. A ironia das ironias é que Mitterrand via na União Monetária a maneira de manter a França na liderança e o poder da Alemanha limitado, e acabou por acontecer o oposto: a Alemanha instalou-se no lugar do condutor. Mas também temos de reconhecer que não há na Alemanha grande vontade de poder e que isso também explica esta relutância em querer liderar.
Mas nesta situação particularmente difícil que a Europa atravessa, e a que enfrenta no mundo à sua volta, alguma liderança é fundamental...
Lembro-me de uma vez ter conversado com Angela Merkel sobre isso e ela disse-me que não conseguia equilibrar as coisas. Quando era demasiado relutante, as pessoas exigiam liderança, quando mostrava liderança, as pessoas acusavam-na de querer dar ordens a toda a gente. Devo dizer que tenho alguma simpatia por este dilema alemão. A resposta a este dilema é uma coligação de vontades — ter dois ou três países como a França, a Alemanha e a Polónia, ou França, Alemanha e Itália ou a Espanha, capazes de tomar a liderança, mas até agora ainda não foi possível atrair esses novos parceiros. É por isso também que lamento a falta de resposta de Merkel a Macron.
Na França, os partidos mainstream deixaram praticamente de existir. Macron está a enfrentar uma situação difícil e a única aparente beneficiária da crise parece ser a União Nacional de Marine Le Pen. Quando olha para lá, o que pensa que pode vir a acontecer? Sem França não há Europa...
Como lhe disse, acabo de regressar de Paris, e eles lançaram agora este grande debate nacional. Pessoalmente, gostaria que o Reino Unido também lançasse um e talvez a Alemanha também o devesse fazer — se calhar, fazia-nos bem a todos. Vamos ver o que é que resulta daí. O problema está obviamente na maneira de ser de Macron, o Presidente jupiteriano, muito ao estilo das elites — e isso contribui para levar as pessoas a criticarem-no tanto. Mas há também aquilo que ele quer fazer, que é, em grande medida, muito bom e muito necessário. Espero que possa regressar com força suficiente para poder levar para a frente a sua agenda de reformas para a França e para a União Europeia. Mesmo que reconheça que pode ser difícil.
Na França, no Reino Unido, no mundo ocidental — estes movimentos são quase sempre de pessoas que sentem que foram deixadas para trás, em consequência da globalização, em parte agravada pelos efeitos da crise financeira. Mas também verificamos que as elites políticas e económicas continuam, mais ou menos, como se nada tivesse acontecido: a globalização é boa, a liberalização dos mercados também. Não se tiraram grandes lições da crise. Não há novas ideias. Mas são precisas respostas. Quais são as respostas?
Questão fundamental. Em primeiro lugar, creio que precisamos de ter uma boa compreensão das razões pelas quais nascem estes movimentos. Uma das coisas que já começam a ser perfeitamente claras é que esses movimentos não resultam apenas das condições económicas. Porque, afinal de contas, a Alemanha ou a Polónia estão muito bem economicamente, os salários aumentaram, e isso não trava esses movimentos populistas e nacionalistas. Há outra dimensão, cultural, que também tem a ver com o liberalismo. Um dos grandes projectos do liberalismo era mais educação para toda a gente e sobretudo mais jovens nas universidades. Acabou por ter consequências inesperadas, contribuindo para esta grande divisão das nossas sociedades entre a metade que foi para a universidade, que vive nas cidades e que se tornou citadina, liberal, cosmopolita, a favor da imigração e da Europa, e aqueles que não apenas foram deixados para trás economicamente, mas também, nalguma medida, culturalmente. Prefiro dizer que eles sentem não apenas a desigualdade da riqueza, mas também a desigualdade do respeito. E quando essas pessoas dizem o que pensam, são imediatamente acusadas de serem fascistas por terem ideias que não são bem-vistas pelo liberalismo dominante. Por isso, penso que o desafio não é apenas em relação ao modelo económico, mesmo que seja óbvio que temos de fazer mais para combater as desigualdades — é extraordinário como os banqueiros continuam a ganhar prémios absolutamente desproporcionados dez anos depois da crise financeira da qual foram, em grande medida, responsáveis. A Europa é parte da resposta para aqueles que fazem parte dela. Mas, para mim, a parte realmente importante da resposta tem de ser aquilo a que chamo “patriotismo liberal”. Não podemos deixar a nação para a direita, para os populistas, os nacionalistas, os xenófobos. Temos de ter a nossa própria imagem positiva de nação. E isto é algo que eu penso que Macron percebeu perfeitamente — não é a Europa versus a nação e, en même temps, a Europa e a nação, no seu sentido liberal e cívico. Creio que os intelectuais, as universidades, os media têm um papel muito importante a desempenhar, começando por tratar a outra parte das nossas sociedades com maior respeito, levando a sério as suas preocupações e desenvolvendo um patriotismo liberal positivo.
Essa parte também não se sente politicamente representada pelo actual sistema partidário e é talvez essa uma das razões pelas quais, por vezes, se torna violenta, como temos visto em Paris.
É crucial traçar uma linha divisória intransponível contra a violência. Mas, sim, eles não se sentem representados, não apenas no sentido do seu voto, mas noutro sentido, quando perguntam: “Este político parece-se com alguém que eu conheça? Tem alguma coisa de comum comigo?” Há 30 ou 40 anos, a resposta teria sido sim. Havia gente do movimento sindical e dos movimentos dos trabalhadores. Hoje temos este problema de uma elite política altamente profissionalizada e muito distante, incluindo os media.
São dois mundos...
São dois mundos, duas nações, e não importa se os políticos são de esquerda, de direita ou de centro, porque frequentaram as mesmas universidades, vestem o mesmo tipo de roupa e não se parecem com eles. É um problema de representação num duplo sentido.
Para lá das fronteiras da Europa, as coisas também não estão a correr muito bem, em primeiro lugar, em resultado das mudanças na nação mais poderosa do mundo. Mas, para a Europa, esta mudança está a ser sentida como um choque muito forte. De um lado, os EUA, que já não nos querem proteger. Do outro lado, a Rússia, que pratica um expansionismo agressivo, deixando de ser um parceiro para passar a ser uma ameaça. Novas grandes potências estão a emergir no mundo. A Europa não estava preparada. Como é que vai lidar com isto, se é que vai?
Tem toda a razão. Podemos acrescentar à sua lista as alterações climáticas, onde não estamos, muito simplesmente, a fazer o que é necessário. Mesmo somando todos os compromissos assumidos, as previsões apontam para um valor superior aos 2% de aumento da temperatura global em 2060, o que será desastroso para os nossos netos. Suponhamos que a Europa, nos anos 90, em vez de ter levado a cabo os seus dois grandes projectos — a União Monetária e o alargamento —, tivesse dado prioridade ao alargamento e à construção de uma política externa e de segurança comum, o que era um complemento lógico, e decidido esperar mais algum tempo pela União Monetária, mesmo sem abdicar desse objectivo. Estaríamos hoje numa situação muito melhor. Porque se tornou hoje evidente até que ponto precisamos desesperadamente dessa política externa e de segurança, justamente porque não a temos. A Rússia e a China, por caminhos diferentes, estão levar a cabo, com bastante sucesso, o jogo de dividir para reinar. A China, investindo enormemente num número crescente de países europeus, em portos na Grécia.
Ou em Portugal…
Na Grécia, detêm um porto de contentores, dando-lhe quase um poder de veto na mesa das decisões europeias. A Rússia, através da desinformação, influenciando o nosso processo democrático. E a verdade é que não conseguimos encontrar uma forma de reagir em conjunto — tanto em matéria de hardpower como de softpower. E, por cima de tudo isto, ainda temos o “Brexit”, que significa a saída de um dos dois países — se quiser, três — mais importantes em termos de capacidade diplomática, de capacidade militar e de serviços de informações, etc. As pessoas vão dizendo que vai tudo correr bem, porque vamos manter uma relação muito próxima, mas quem souber alguma coisa de história europeia ou que saiba alguma coisa de política, percebe que não vai ser assim — as coisas não seguem normalmente esta lógica racional. Portanto, estamos numa posição difícil.
Dito isto, ainda não estamos perdidos. Como já referi, a situação política pode mudar em alguns países. Vai haver eleições na Polónia este ano, pode haver mudanças na composição do Governo na Alemanha e haverá eleições nos EUA dentro de dois anos. E se há uma coisa de que tenho a certeza é de que não devemos desistir dos EUA, porque sem eles não podemos fazer praticamente nada. Não perdi a esperança.
As pessoas mobilizam-se durante as crises, quando têm um sentido de extrema urgência e de perigo, o que explica, por exemplo, o extraordinário espectáculo de 700 mil pessoas nas ruas de Londres a pedir um segundo referendo, desfraldando bandeiras da União Europeia à volta da estátua do duque de Wellington. Estive lá e nunca esquecerei. Isso acontece porque o sentimento de crise é muito forte. Creio que, na maior parte da Europa, esse sentimento ainda não é tão agudo.
E nos EUA? Também estamos a observar o reforço dos extremos ou, pelo menos, uma forte polarização política...
Sim. A questão-chave aí é saber se os democratas conseguem evitar o erro de Corbyn. Hoje, existe uma fortíssima tendência nos Democratas para virar à esquerda, como o Labour fez, sobretudo atraindo gente mais jovem. Não é possível ganhar as eleições presidenciais virando à esquerda. Eles também têm gente diferente, candidatos mais novos e mais centristas. O lado para o qual os Democratas forem é tão importante para os EUA como foi a liderança de Corbyn para o Reino Unido.
O problema é que os EUA continuam a ser o país mais poderoso em todas as dimensões. Em dois anos, a capacidade de destruição da ordem internacional de Trump foi elevada. Faltam ainda dois anos. Já falámos da Rússia e da China, mas podemos falar também do crescendo dos regimes autoritários: Brasil, Turquia, etc.
Mas, como dizem os investidores, o comportamento dos mercados no passado não é um guia para o comportamento no futuro. Raymond Aron disse uma vez, em jeito de piada, sobre a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, que era uma decadência competitiva. O sistema chinês, em particular, tem enormes desafios internos. Para além dos desafios inevitáveis à medida que se torna um país de rendimento médio, Xi Jinping resolveu jogar a cartada leninista — mas o papel liderante de um só partido e de um só líder não pode resolver todos os problemas de uma economia moderna e complexa. Creio que devemos contar também com a probabilidade de uma crise na China. Não sei quando, tal como não sabíamos com a União Soviética, mas a probabilidade existe, o que não produzirá milagrosamente uma democracia liberal, antes pode produzir uma China mais nacionalista, mais militarista e mais perigosa. Mas que não será inevitavelmente cada vez mais rica e mais poderosa. E eu creio, como liberal que sou e ocidental, que boa parte das democracias liberais vão recuperar. Creio que há uma oportunidade nesta crise de renovar as nossas instituições e as nossas sociedades num sentido de que precisam urgentemente. A questão é saber se aproveitaremos ou não esta oportunidade.
Estamos constantemente a comparar a nossa situação actual com os anos 30 do século passado ou com os anos que precederam a I Guerra Mundial. As lições da história são sempre importantes, obviamente. Mas quais são as semelhanças e as diferenças?
Há um famoso ditado segundo o qual a história não se repete, mas, às vezes, rima. Se olharmos para os anos 30, as semelhanças mais chocantes estão na retórica do fascismo, que está a regressar efectivamente. Se escutarmos, por exemplo, Viktor Orbán (não estou a dizer que o seu regime seja fascista, mas a retórica é), há uma semelhança preocupante — é aquilo a que os alemães chamam herança intelectual, incluído na AfD. Temos também a tentação natural de comparar a crise de 2008 com a de 1929. Passaram 11 anos sobre a crise de 2008, por isso a comparação coloca-nos em 1940. Nesse ano, já vivíamos uma guerra mundial provocada por regimes totalitários. Em comparação, conseguimos enfrentar uma crise financeira de idêntica dimensão bastante melhor. Estas são as semelhanças e diferenças em relação aos anos 30.
E o mundo que existia no início do século XX?
Para o mundo anterior a 1914, a grande semelhança está em que as pessoas são muito complacentes em relação à interdependência e esquecem-se de que as nações da Europa não só eram muitíssimo interdependentes, talvez mais ainda do que hoje, como os seus chefes de Estado pertenciam quase todos à mesma família, eram todos primos, na maioria descendentes da rainha Vitória e, mesmo assim, entraram em guerra uns contra os outros. Não contemos com o facto da interdependência ou da globalização serem uma garantia de que isso não acontecerá de novo. A diferença é que vivemos em grande maioria em democracias liberais e que conhecemos a história. A grande questão do nosso tempo é essa: conseguiremos aprender com a nossa história sem precisamos de a repetir?
Não nos comportarmos de novo como sonâmbulos...
Exactamente. Espero que mesmo os sonâmbulos comecem a acordar.