Crítica a O Último Mergulho: A água e os golfinhos
O Último Mergulho é o quarto episódio da série Os 4 Elementos.
Crítica publicada no PÚBLICO a 19 de Setembro de 1992
Quarto episódio da série Os 4 Elementos, O Último Mergulho é, na obra de César Monteiro, uma espécie de improviso, mas nem por isso menos pensado, prosseguindo o jogo de rimas entre o sarcasmo e a ternura iniciado com Sapatos de Defunto.
Há no cinema de João César Monteiro uma marca de "precariedade", como se o autor tivesse sempre presente o carácter efémero do meio com que trabalha. Quase todos os seus filmes se expõem numa nudez que tem tanto de sincera como de calculista. Por um lado, constata essa fragilidade, por outro, exibe o seu conhecimento. A Sagrada Família apresentava-se como "fragmentos de um filme esmola", Veredas era um filme "fabricado por..." e O Último Mergulho é um "esboço para um filme". Todos os restantes se apresentam, conste ou não do genérico, sob o mesmo signo transitório, com o artista assumindo uma condição "artesanal" num tempo em que predomina o anonimato da tecnologia. Esta característica faz de Monteiro um dos mais singulares realizadores de hoje, mas também um dos mais frágeis.
Diga-se desde já que esta "fragilidade" não significa "fraqueza" e sim "vulnerabilidade". Quer isto dizer que não há entre nós (e poucos haverá, hoje, lá por fora) um autor que se exponha de forma tão sincera, quase despudorada. Reconhecer isto não significa aceitar de forma incondicional a sua obra, mas é evidente que muitas das reservas que surgem têm algo a ver com o "incómodo" que tal atitude intransigente provoca num meio em que predomina a hipocrisia e os "gratos, devedores e obrigados".
Creio que desde Sapatos de Defunto nenhum filme de César Monteiro exibia de forma tão aberta essa atitude provocante e essa forma tão vulnerável. Recordações da Casa Amarela talvez seja o seu melhor filme, mas era uma obra mais dominada, mais "profissional". O Último Mergulho recupera um certo estilo artesanal, expondo as próprias condições de produção o seu carácter improvisado ao sabor da inspiração ou dos acontecimentos.
A impressão de improviso
É um filme que, mais do que ser conduzido, se "deixa levar". E até neste sentido, neste movimento autónomo que o filme tem, quase independente do seu autor, o filme respeita o seu ponto de partida: a água, que se arrasta à deriva mas com um fim preciso (os episódios de Monteiro e Botelho são os que melhor traduzem, intencionalmente ou não, a função significativa dos elementos que abordam: a Água e o Ar).
Esse movimento de deriva é flagrante em certos momentos ("fragmentos" seria melhor dizer), mas há um particularmente sugestivo: aquele que acompanha uma das prostitutas (Rita Blanco) pela Avenida da Liberdade até sentar-se num banco. No fundo do plano, quase despercebido, estaciona um táxi, e o motorista desloca-se, mais ou menos na sombra, até ao banco. Próximo deste tem um ligeiro sobressalto e desaparece rapidamente do plano. Tudo isto deixa a impressão de improviso. Percebe-se que o taxista nada tem a ver com o argumento, que andaria, possivelmente, em busca de uma "pega" e se confrontou de súbito com a câmara de filmar.
Mas isto, que poderia ser uma espécie de "apanhado", acaba por dar ao filme uma marca de "realismo" (patente também nas sequências da festa dos Santos Populares, onde Lisboa nocturna foi captada como nunca na belíssima fotografia de Dominique Chapuis), mas também uma dimensão "surreal", com a justaposição de três pontos de vista: o do realizador, que constrói uma ficção, o do inesperado intruso, que a toma por real, e o do espectador, que surpreende a "fractura" entre os dois (durante a festa na rua esta tripla visão aparece com frequência, e em certo momento um novo olhar é introduzido no plano: o do próprio César Monteiro, no que é uma provocação directa ao espectador, como o era o plano do manguito com que terminava A Sagrada Família). Esta sobreposição de olhares, até então mais ou menos aleatória, conceptualiza-se na provocante sequência "dupla" da dança de Salomé. Aí a "sobreposição" já não é "dentro" do plano e sim na "colagem" dos planos (dois "planos-sequência", separados por um "insert"), em que ao efeito de repetição se junta o do cinéfilo, um sonoro e outro mudo, que exige toda a cumplicidade do espectador. E também na sucessão de planos com as manifestações de ternura de Samuel e Esperança, mudas também, como muda é ela.
Mas o símbolo da água que percorre todo o filme (e seria justo sublinhar ainda como o diálogo escatológico desagua, como um rio no mar imenso, nas sublimes palavras que Holderlin põe na correspondência de Hyperion e Diotima, e como essa sucessão de imagens mais ou menos improvisadas culmina nesse espantoso "travelling" por entre os girassóis) marca de forma particular os personagens. Samuel e Elói, dois potenciais suicidas, encontram-se à beira rio. Os dois singulares dias que vão partilhar, adiado que foi o "último mergulho", poderiam comparar-se ao salto do golfinho fora de água, com a descoberta de um outro horizonte. Para Elói será o último salto, mostrando a Samuel que há ainda alguma coisa por que vale a pena viver, dando-lhe Esperança, no sentido figurado e directo (a sua filha), mas sabendo o que ela tem de efémero, perdidas que estão todas as suas.
Resta-lhe o último mergulho e desaparecer nas águas iniciais, deixando alguém para continuar a "mensagem", como o louco enviava João de Deus para o mundo no final de Recordações da Casa Amarela.