Mayra Andrade mais livre e sem pudor

Seis anos depois de Lovely Difficult, volta aos discos de estúdio com Manga. Um álbum em que se sintoniza com a produção africana de hoje e reivindica uma maior liberdade. A 1 de Março, apresenta-se no Teatro Capitólio, em Lisboa.

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daniel rocha

Mayra Andrade lembra-se bem de, aos 17 anos, a viver sozinha pela primeira vez, em Paris, a sua professora de canto lhe dizer que precisava de se soltar. Ao palpar-lhe o diafragma, dizia que a jovem aspirante a cantora se encontrava demasiado bloqueada, que assim era difícil trabalhar, e que precisava de chorar para o corpo eliminar aquela rigidez e aquela tensão. Mayra acreditava que, se seguisse esse conselho, ia “desabar”. Resistiu enquanto podia, com medo de que depois da primeira lágrima não fosse capaz de estancar o choro enquanto não estivesse, de novo, com bilhete de avião na mão para regressar à ilha de Santiago. Só passado um ano de vida na capital francesa, a educar-se tecnicamente para o futuro que escolhera na música, acabou por se permitir chorar ao encontrar-se só no meio de 2,2 milhões de pessoas, longe da família e dos afectos descomplicados que fazem parte do dia-a-dia em Cabo Verde.

É, por isso, de um esclarecedor simbolismo ouvir agora Mayra Andrade a cantar Plena, magnífico tema do seu quarto álbum de estúdio, Manga, com edição a 8 de Janeiro pela Sony Music France. Plena é um prodígio de interpretação, rugosa e denunciadora das suas escutas jazzísticas (dá para imaginar como vindo do mesmo lugar que Cavalo, de Rodrigo Amarante), possivelmente o momento mais brilhante que a cantora gravou até hoje. Sobretudo porque é um tema em que não recusa a fragilidade em que se expõe, numa entrega emocional que quase nos torna voyeuristas. “O cantor é um transmissor muito directo das suas vivências e do mundo à sua volta”, afirma ao Ípsilon. E aconteceu que durante o take de Plena que vingou, Mayra começou mesmo a chorar e optou por não parar. Os produtores sugeriram-lhe, em seguida, que aproveitasse apenas o primeiro trecho do take. “Não, a música é esta”, respondeu.

“Neste disco quis cantar preocupando-me o menos possível com o meu canto”, revela, lembrando que nos discos anteriores acabou sempre por se preocupar demasiado e ficar insatisfeita com o resultado final. E então pensou: “Talvez seja melhor não me preocupar tanto e poder ficar um bocadinho insatisfeita, ou então descobrir que preocupando-me menos mas cantando de uma forma mais instintiva encontro uma voz que seja mais real e mais minha.” Plena é, por isso, símbolo perfeito de uma Mayra Andrade que surge mais solta e livre desde que começámos a escutá-la em Navega (2006). Fruto, na verdade, de “um alinhamento de transformações muito íntimas, de uma afirmação pessoal, de romper com paradigmas e medos”. “Tudo isto aconteceu em simultâneo – no momento em que se chega a um sítio novo as coisas desabrocham assim”, refere, em alusão a ter trocado Paris por Lisboa em 2015 (lá voltaremos, mais à frente).

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Quando começou a questionar o que tinha para oferecer à música cabo-verdiana, o percurso de vida (nasceu em Cuba, viveu no Senegal, em Angola, na Alemanha e em Cabo Verde) demonstrava-lhe que a sua criação não poderia ser obediente à tradição daniel rocha

Um pouco como se a letra do primeiro tema de Manga, Afeto, em torno de uma promessa manca de relação amorosa, se reflectisse afinal sobre si própria ao cantar ‘Teu pudor foi transmitido / E será neutralizado”. “Neutralizar esse pudor é exactamente neutralizar todas as coisas que ainda me possam impedir de ser eu e mais eu”, reconhece Mayra Andrade. “Não num sentido egocêntrico, mas no sentido da afirmação e da libertação. Tenho consciência de barreiras mentais que nos limitam e dá-me vontade de romper com elas. Essas barreiras serviram, até determinado momento, para criar uma estrutura, para avançar, para ultrapassar obsctáculos, mas há um momento em que a luta é diferente e podemos relaxar um bocadinho em certos aspectos, celebrar um bocadinho mais e trazer mais ligeireza às coisas.”

África contemporânea

Afeto é a pista certa para seguir Mayra no acolhimento dessa ligeireza – que não é sinónima de superficialidade, atente-se –, introduzindo-nos de imediato ao novo mundo musical que explora em Manga e que é muito marcado pelo trabalho dos beatmakers Akatche e 2B, e pelo produtor Romain Bilharz (cujos créditos anteriores o colocam em discos de Feist ou Stromae). A dupla formada por Bilharz e 2B, a operar em Paris e Abidjan, foi a solução milagrosa que chegou a desesperar a editora francesa. E isto porque todos os testes prévios com outros produtores “não eram satisfatórios” para a cantora e autora da maioria dos temas de Manga. Embora Mayra não tivesse uma imagem de absoluta nitidez em relação ao que queria alcançar musicalmente com o seu quarto álbum, sabia bem que queria sintonizar-se com a produção africana contemporânea e tinha a certeza daquilo que queria evitar.

“África está a viver um momento muito forte musicalmente”, diagnostica a cantora. “É um continente que sempre influenciou o planeta, mas de há três anos para cá está a surgir uma cena muito especial que tem invadido o mundo de uma forma mais positiva.” Foi por essa razão que quis também questionar-se no seu lugar de cantora. Cantora com raízes fundas em Cabo Verde, como o sabemos, Mayra Andrade nunca foi “100% tradicional nem 100% outra coisa – porque fazer 100% de outra coisa seria uma espécie de travestimento”. E sê-lo-ia, em primeiro lugar, porque o próprio percurso de vida que tinha atrás de si aos 15 anos (nasceu em Cuba, viveu no Senegal, em Angola, na Alemanha e em Cabo Verde), quando começou a questionar o que tinha para oferecer à música cabo-verdiana, lhe demonstrava com toda a certeza que a sua criação não poderia ser obediente à tradição.

Foi com essa idade, aliás, que conheceu Orlando Pantera – um ano antes de o músico morrer vítima de uma pancreatite aguda -, na altura a sua “única referência de alguém que estava a pegar na música tradicional [cabo-verdiana] e a fazer daquilo uma cena completamente diferente”. E foi a Pantera que se confessou, nesse seu inocente início de carreira, “super angustiada” por não saber o que iria fazer na música. Só sabia que queria fazer algo diferente. Ele riu-se e terá respondido: “Então já sabes, nha cretcheu. Vais fazer uma coisa diferente. Já verás o que é diferente, mas já sabes exactamente o que vais fazer”. “Só que eu não fazia puto ideia do que ia fazer e lembro-me do quanto isso me angustiava aos 15 anos, porque já sabia que a minha missão na cultura do meu país era trazer uma pedra diferente”, recorda Mayra. “Estava ainda cheia de questões: como é que faço?, onde é que pego?, onde é que há músicos?, como é que se começa? Estava tudo por fazer.”

Apesar da tenra idade de então, propensa ainda a tantas angústias quanto medos mascarados de certezas, suspeitava já de algo que ganhou a força de uma verdade com a passagem dos anos: “Vir de um país como Cabo Verde, que tem uma cultura forte mas um certo proteccionismo, exige do artista alguma força de carácter para afirmar a sua liberdade.” Essa liberdade, Mayra reivindica-a agora através de uma aproximação das ilhas do seu país ao restante continente africano. “Cabo Verde está muito virado para o mundo”, considera, “mas estamos em África e, às vezes, basta virarmo-nos para aquilo que está mais perto de nós. E sim, isso faz um eco totalmente natural com a vibração que tenho em mim neste momento.”

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Mayra Andrade que surge mais solta e livre desde que começámos a escutá-la, fruto de “transformações muito íntimas, de uma afirmação pessoal, de romper com paradigmas e medos” daniel rocha

Seis anos depois

Navega, o primeiro álbum de Mayra Andrade, chegou em 2006, cinco anos depois da morte de Orlando Pantera. Mas o compositor era, ainda assim, o principal farol da pequena mas firme revolução pessoal que a cantora operava na música do seu país, deixando emergir as suas referências tangentes ao jazz ou à música brasileira. Pantera contribuía com quatro temas para a estreia de Mayra, que então se aventurava na autoria de duas canções. Muito mudou desde então, a cantora foi chamando cada vez mais a si a composição de músicas e letras, e em Manga oito dos 13 temas carregam a sua assinatura. E não é por falta de opções; é mesmo porque sabe muito bem o que quer dizer e dificilmente poderá alcançar essa intenção alcandorada nas palavras dos outros. Mas também porque muitas vezes se vê refém do olhar que essoutros lançam sobre si ou quando lhe sugerem um futuro demasiado próximo do seu passado.

Quando recebe canções de outros compositores, Mayra prefere tomar contacto com canções que lhe chegam numa produção “muito básica e simples”, só voz e guitarra, para encontrar o espaço necessário a fantasiar sem grandes constrangimentos o tipo de arranjos que se imagina a seguir e que pode adaptar-se ao contexto que pretende trabalhar. Precisamente o oposto daquilo que, aprendeu agora, funciona ao enviar os temas da sua autoria para os produtores que a acompanharão na fabricação de novo reportório. Num primeiro momento, ao enviar demos com voz e guitarra para os possíveis futuros produtores de Manga (mesmo com instruções da sonoridade que pretendia explorar, tendo Ojuelegba do nigeriano WizKid servido de exemplo), as respostas que lhe chegavam eram mais conservadoras – “E percebi que esse método acabava por condicionar muito as ideias, andava sempre tudo à volta de coisas que já tinha feito”. À medida que novas canções iam surgindo, decidiu então enviar demos de voz e teclados, num trabalho desenvolvido com João Gomes (Orelha Negra, Fogo Fogo), que transformasse de imediato o primeiro contacto com o novo material e pudesse sugerir caminhos menos óbvios.

Até mesmo com os produtores mais novos, 2B e Amankche, habituados a saturar as suas criações com os mais diversos efeitos, Mayra Andrade teve de batalhar para conseguir que a sua voz em Pull up se escutasse filtrada pelo autotune. Resistiu apenas num par de versos, depois de ter sido testado, por insistência da cantora, em todo o tema. Ouvindo o resultado, lembra, “gritava no estúdio e parecia uma criança que estava a ‘ver’ o Pai Natal pela primeira vez”. Não tendo conseguido levar a sua totalmente avante, e pensando no autotune como um pedal de guitarra, deixa no ar a promessa: “Estou numa fase em quero usar a minha voz como um instrumento qualquer, e vou usar e abusar mais futuramente.”

Pull up é o tema mais desbragadamente pop de Manga. E pop é palavra que não soa qualquer campainha de alarme no mundo de Mayra Andrade. Na verdade, na sua opinião, “um passo demasiadamente grande não seria mau, um passo em falso sim”. Mas Manga não soa nem ao primeiro, nem ao segundo. E talvez pareça cavar um grande fosso com o anterior Lovely Difficult porque – é fazer as contas – se passaram seis anos desde que tínhamos ouvido Mayra em disco pela última vez. Muito mudou desde então na sua vida. Enquanto mulher, diz, “está-se sempre a ceder a mudanças e a sofrer alterações, fisiológica e psicologicamente, e há sempre conflitos para resolver, perceber-se como nos posicionamos para chegar a algum lado, conquistar algumas coisas mas não abrir mão de outras, só porque a sociedade espera isto ou aquilo”. Mayra, que sempre conseguiu viver mas ao mesmo tempo ser observadora e narradora da sua própria história, garante que esta é a base de Manga, a capacidade de “estar a viver um cataclismo e ter a distância para ver a beleza das coisas, porque vai ser tão mais incrível depois”.

Português e crioulo

Talvez por isso tenha querido dedicar-se agora a um álbum “mais acessível e mais dançante”. “Queria divertir-me com a minha própria música, queria estar no palco e divertir-me com a minha banda”, confessa. À música de perfil mais tradicional poderá voltar sempre, em qualquer outro momento. Mas agora não era tempo disso, era tempo de um grito de liberdade de que andava à procura e que só poderia ser berrado com o corpo todo, em crioulo ou em português. Já em 2016, de facto, em conversa com o Ípsilon em torno da lusofonia e em antecipação da sua participação no Mexefest, Mayra analisava a sua relação com as línguas que cantava classificando o francês como mais cerebral, o inglês enquanto entrave à sua personalidade musical e o português e o crioulo como idiomas físicos, que lhe aproximavam o coração da boca e sentia em cada centímetro de pele.

Não espanta, assim, que sejam esses dois idiomas a dar forma esta reclamação de liberdade e de uma linguagem mais directa e concreta que foi aprimorando em conversa com amigos rappers. “Nos discos anteriores”, admite, “escrevia sobre cenas que não tinham nada que ver comigo, personagens e pessoas que eu achava que tinham vidas mais duras ou mais interessantes do que a minha. Depois comecei a escrever sobre coisas que me tocavam e pessoas que faziam parte da minha vida, mas de forma mais abstracta, mais etérea. Neste momento, mesmo que o público não saiba exactamente para quem é que escrevi, percebe a história e tem espaço para projectar as suas experiências.” A editora ainda insistiu para que gravasse algum tema em francês, mas Mayra resistiu, informou-os que não iria compor nessa língua e concedeu que se lhe “trouxessem uma canção irresistível, havia de gravar”. Só que essa canção nunca chegou.

O português ganhou um protagonismo maior e natural com a mudança de Mayra para Lisboa. “Acordar com sol e estar num sítio em que me sinta bem e que me alimenta ao estar exposta a uma cena musical contemporânea, alternativa e mestiça, tudo isso contribuiu muito para Manga”, confessa. A chegada a Portugal acabou por coincidir com o lançamento da sua colaboração com Branko no tema Reserva pra dois, “uma das portas de entrada” para perceber que também faz parte desta sonoridade de uma Lisboa a reinventar-se musicalmente e a deixar-se contagiar pelo som das periferias. Depois vieram as amizades com Sara Tavares e Cachupa Psicadélica (que desaguaram nos temas Guardar mais e Badia), num álbum em que canta ainda Luísa Sobral ou Princezito.

O belíssimo caldeirão magnético e sedutor de Manga é feito de uma electrónica de “timbres quentes” – é passar os ouvidos pelo tema título para esbarrar nesse encanto – que dança colada, corpo com corpo, à guitarra acústica ou ao cavaquinho que Kim Alves mantém ligados à terra, a Cabo Verde. Kim, diz Mayra, é o “guardião da tradição cabo-verdiana” que sempre a acompanha. E é também mais um garante de despreocupação. Enquanto ele está presente, a cantora sabe que a bandeira do seu país está já a ser agitada, sem que lhe pese nos braços. E pode, enfim, ser tão livre quanto se imagina a ser.

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