Crítica ao filme A Bacia de John Wayne : Uma valsa a mil tempos

São muitos os filmes de A Bacia de J. W., obra cuja aposta passa pela capacidade de constante reinvenção do seu sistema formal, e pela celebração das suas próprias mutações

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Esta crítica foi publicada a 30 de Janeiro de 1998

Depois de Recordações da Casa Amarela João César Monteiro realizou O Último Mergulho. Faz todo o sentido que este A Bacia de J. W. surja agora, na sequência de A Comédia de Deus. Recorde-se que O Último Mergulho se auto-apresentava como "um esboço de filme", proclamando uma certa discrição e uma relativa menoridade de tom, como se assinalasse um tempo de retemperação de forças e de experimentação formal entre duas obras possuidoras de um fôlego muito maior. Por oposição às "catedrais" (as Recordações; a Comédia), O Último Mergulho era assim uma espécie de "capela imperfeita" - qualificativos que têm apenas que ver com a amplitude de cada filme, não com os seus resultados. A Bacia de J. W. parece emparelhar com O Último Mergulho: também aqui podia haver uma legenda a falar de esboço; a diferença é que, neste caso, em vez de "de filme" teria que dizer "de filmes".

São muitos os filmes de A Bacia de J. W., obra cuja aposta passa pela capacidade de constante reinvenção do seu sistema formal, e pela celebração das suas próprias mutações. É evidente que um filme assim está muito próximo da mais completa anarquia, levada a um ponto em que as fronteiras com a pura provocação se esbatem por completo. João César Monteiro sabe-o desde o primeiro momento. De resto, a provocação foi sempre parte intrínseca do seu cinema: como outros filmes seus, A Bacia de J. W. nem sequer precisa de dizer "ama-me ou deixa-me" porque à partida já sabe quem são aqueles que o vão deixar e não lhe apetece perder tempo com eles. Mas também sabe que os tempos estão difíceis para os provocadores e que um filme como este provavelmente só tem lugar em sítios como o Pólo Norte. E é lá que o filme acaba, num Pólo Norte "de cinema", estranhamente parecido com um cenário de western, último refúgio para uma personagem auto-exilada que olha para o que deixou atrás com uma mescla de condescendência e de raiva. A Bacia de J. W. é o filme em que João César Monteiro inventa o seu próprio limbo.

O estranho título do filme (a propósito, as iniciais J. W. correspondem a John Wayne), bem como a ideia do Pólo Norte, têm origem numa frase de Serge Daney: "J'ai revê que John Wayne jouait merveilleusement du bassin au Pôle Nord", numa nova homenagem ao falecido crítico francês depois da dedicatória expressa em "A Comédia de Deus". A frase, que é repetida e discutida várias vezes durante o filme, funciona como um mote (em sentido quase musical) na organização de "A Bacia de J. W.": regressa-se a ela para de imediato se partir para outra coisa, e torna-se numa âncora importante num filme cuja chave passa pela sua permanente reinvenção.

E é por uma reinvenção, precisamente, que o filme começa. A mais radical de todas, aliás: nada menos do que uma revisão da criação do mundo, a partir da encenação de um texto de Strindberg - e "A Bacia de J. W." é um filme-"patchwork" à maneira, por exemplo, da "Rosa de Areia" de António Reis e Margarida Cordeiro, articulando citações e representações oriundas das mais diversas proveniências. O texto de Strindberg começa por ser encenado num único plano, fixo e longo - é o "primeiro filme" contido em "A Bacia de J. W.". Um plano que, descobriremos depois, se justifica por se tratar de "teatro no filme" e a câmara estar colocada no lugar do espectador. João César Monteiro (ou melhor, Max Monteiro) representa nessa encenação o papel de Deus, mas de um Deus louco e cruel que criou o mundo e os seres humanos para sua própria diversão. Aqui, é Lúcifer o virtuoso e é pela sua virtude que se dá a sua queda: por exemplo, por ter ido junto de Adão e Eva tentar explicar-lhes que o mundo é uma coisa desagradável e não o paraíso que eles pensam que é. Esta primeira e fabulosa sequência, assente como se disse num único plano rigorosamente enquadrado num décor surrealista de andaimes e balões, prepara-nos para o tom do filme: a ordem do mundo inverteu-se (ou esteve sempre invertida) e há que reajustar as posições que nele ocupamos. Mesmo que alguém acabe por descobrir que o seu lugar é num Pólo Norte idealizado.

Nesta linha, "A Bacia de J. W." não é um filme meigo para Portugal. Nas tintas para os optimismos oficiais ou oficiosos César Monteiro vai traçando um retrato arrasador do país, a que numa cena se refere como "esta piolheira" - o insulto e o vernáculo são sobejamente utilizados, mas também há espaço para alegoria: veja-se a sequência do Maxim's, transformado em qualquer coisa parecida com o Inferno (talvez seja pela abundância de tons vermelhos), onde o bacalhau de Quim Barreiros e um grupo de "skinheads" coexistem lado a lado. Mais do que um humor caricatural, o que essa sequência (e outras, focando a tecnocracia, o dinheiro ou a televisão) transmite é a impressão de uma amargura fundamental que, com maior ou menor camuflagem, percorre "A Bacia de J. W." de uma ponta à outra.

Mas iludindo essa amargura surgem de quando em quando pequenos momentos de pura celebração. De quê? De uma liberdade só encontrada no cinema: toda a sequência à beira rio, com aquela espantosa dança de sombras, ou o belíssimo plano de uma valsa a três ao som de uma canção de Jacques Brel. Como essa canção, "A Bacia de J. W." é um filme a muitos tempos - e todos eles partilham o mesmo prazer em provar que o cinema ainda pode ser o espaço (e o tempo) para libertar as formas de todos os seus espartilhos.

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