Nem oito, nem oitenta: a Europa à procura de um justo equilíbrio
1. Até há bem pouco tempo, a “estratégia” europeia em relação à China era muito simples: cada um competia pelo acesso ao gigantesco mercado chinês para vender o mais possível. A Alemanha estava, como é costume, no pódio, com quase 50 por cento das exportações europeias. Mas os franceses conseguiam vender dezenas de Airbus, os nórdicos conseguiam exportar milhões de telemóveis. Foi a fase da ascensão “pacífica” da China para desenvolver a sua economia, importando de todo o mundo as “commodities” indispensáveis a esse desenvolvimento mas também os bens de equipamento e o consumo de luxo que a sua nova classe média começava a não dispensar.
A União Europeia redigiu disciplinadamente uma longa “estratégia” para as suas relações com o gigante emergente, como redigiu outras para a Rússia, a Índia ou o Brasil. No caso chinês, muitas páginas de princípios gerais que não condicionaram em nada a política de cada Estado-membro e fizeram rapidamente da China o segundo maior parceiro comercial da União, logo a seguir aos EUA. A China, por seu lado, cultivava as boas relações com a Europa, sempre para contrabalançar as suas relações com os EUA e aplicando a velha táctica de dividir para reinar.
2. Entretanto, a China mudou de estatuto e a sua relação com o mundo mudou de natureza. A sua política de “ascensão pacífica” passou a ser “não tão pacífica”, sobretudo na sua vizinhança asiática. A sua ambição internacional é muito mais visível. Os objectivos económicos e políticos mudaram. De fábrica do mundo, tarefa que hoje delega, em parte, para os seus pequenos vizinhos da Ásia do Sudeste, passou a ser grande exportadora de capitais e de influência, abandonando progressivamente o seu estatuto de BRIC para passar a ser a principal (ou a única) candidata a superpotência mundial. É aí que estamos. Com uma mudança muito significativa em relação à Europa: o Governo de Pequim soube tirar partido da profunda crise europeia dos anos recentes para montar uma estratégia que lhe permite ter hoje uma presença significativa nos países do Centro e Leste europeu e nos países do Sul, os mais afectados pela crise.
O que não quer dizer que não tenha grandes investimentos nos maiores países da Europa do Norte (Alemanha, França e Reino Unido são os campeões desta “prova” de fundo), ainda que sem o peso relativo que têm no Leste e no Sul. Portugal é um dos casos mais evidentes. Mas também a Grécia ou os países de Leste, com os quais Pequim constituiu um grupo de cooperação permanente, chamado “16+1, incluindo 11 países da União mas também os países balcânicos que aspiram a ser membros, como a Sérvia ou o Montenegro. Inevitavelmente, a União Europeia (ou melhor, os grandes países ocidentais) teria de reagir, fazendo evoluir a sua velha estratégia para uma nova, na qual a geopolítica tem um papel mais destacado e a preocupação com a penetração económica chinesa está presente. Em Bruxelas o tom ainda é mais descontraído.
Na última cimeira UE-China, em Julho, em que a parte europeia é representada pelos presidentes da Comissão e do Conselho Europeu, Jean-Claude Juncker afirmou-se crente “no potencial da parceria”, lembrando que o comércio de bens é de 1,5 mil milhões de euros por dia. A preocupação europeia, durante a cimeira, foi um “acordo global sobre o investimento” destinado “a promovê-lo e a protegê-lo”. No caso, a Europa quer denunciar as “significativas distorções do mercado”, que levam a não conceder à economia chinesa o estatuto de “economia de mercado” apesar das pressões de Pequim.
3. Uma das mais recentes manifestações destas preocupações é um novo regulamento que deverá ser adoptado na sua versão final no início de 2019, que cria um mecanismo de “monitorização” dos grandes investimentos estrangeiros em sectores considerados estratégicos para a “ordem e segurança” europeia. A norma é geral mas tem apenas um destinatário: a China. Foi o resultado de longas negociações, obrigando a cinco rounds negociais durante 18 meses até conseguir um consenso (a 20 de Novembro) entre o Conselho, a Comissão e o Parlamento Europeu. “Isto era impensável há três anos”, escreve o grande especialista da China François Godement no European Council on Foreign Relations. O “screening” que a Comissão poderá fazer aos investimentos estrangeiros em sectores considerados estratégicos está limitado a razões de “segurança e ordem pública”. O seu parecer não será vinculativo mas não será inócuo, porque, sendo público, terá um efeito directo nos mercados e consequências politicas junto dos parceiros europeus. Estabelece também que os países (12) que ainda não têm um mecanismo de screening, devem criá-lo. Como lembra Godement, o Japão e os EUA já têm processos de screening dos investimentos estrangeiros legalmente obrigatórios, que reforçaram nos últimos dois anos.
4. Quanto à nova estratégia europeia, ela visa responder à “Belt and Road Initiative”, a nova Rota da Seda lançada por Xi Jinping em 2013 e que corresponde à estratégia de expansão económica (e política) da China para as próximas décadas, permitindo-lhe moldar a nova fase da globalização aos seus interesses e garantindo-lhe o acesso aos grandes mercados europeus. Foca, sobretudo, dois aspectos fundamentais da estratégia chinesa: para além da falta de reciprocidade, a falta de transparência e o crescente endividamento dos países que participam nos projectos megalómanos que a China se propõe ajudar a construir. São vários os casos registados, todos em países em desenvolvimento. As mudanças verificadas em Washington desde que Donald Trump chegou à Casa Branca são o pano de fundo em que se insere esta nova preocupação europeia. Até recentemente, a Europa podia fazer negócios com a China porque os EUA se encarregavam de garantir a estabilidade e a segurança na Ásia-Pacífico e a “contenção” da "superpotência" emergente. A entrada em cena de Trump abre um período de incerteza que é muito mais exigente para os europeus. É aí que estamos. Ainda à procura de uma estratégia para a China que não vá do oito ao oitenta.