Senhorios sem lei, estudantes sem casa: a vida em suspenso dos universitários
As residências universitárias são insuficientes, arrendar um quarto é cada vez mais complicado. Preços exorbitantes, más condições, requisitos ilegais. Fraudes e irregularidades. A angústia e os dramas dos universitários deslocados
Ainda a entrevista não começou e já Daniela Ferreira se antecipa: “Tenho de apanhar o autocarro daqui a 20 minutos, se não perco o comboio.” E se perder o comboio que sai de São Bento dali a coisa de uma hora não tem outro depois. Se perder o comboio, a boleia da estação de Paredes até à casa dos pais, nos arredores da cidade, fica também comprometida. A vida da estudante de 23 anos é como um dominó de peças alinhadas, debaixo da angústia de um desajuste. Basta um para que a rotina desabe.
Anda num vaivém diário desde o início do ano lectivo. Um déjà-vu do sucedido há um ano quando se estreou na Universidade do Porto e na batalha campal do alojamento universitário. Dessa vez, viu a habitação na residência universitária ser recusada por “lotação” e só conseguiu arrendar um quarto meses depois, já o Outono se transformava em Inverno. Partilhava-o com uma colega de curso e cada uma pagava 187 euros. Não era incomportável. Mas os problemas com o senhorio rapidamente ganharam volume: as despesas estavam incluídas no preço, mas a conta da luz nem sempre era paga. Um dia ficaram sem electricidade em vésperas de um exame.
Sabia que tinha de sair. Em Junho já andava em busca de outro quarto, a pensar no novo ano lectivo que iniciaria dali a três meses. Parecia tempo mais do que suficiente para encontrar um espaço. Mas não foi. As aulas já decorrem e Daniela continua sem casa. Faz viagens diárias até Paredes. Ao final do dia, são no mínimo duas horas e meia roubadas ao estudo, mais de uma centena de euros tiradas à carteira dos pais. O que tem encontrado no mercado imobiliário ora é muito caro ora demasiado mau. Na Avenida da Boavista, visitou um T0 com cama de casal e cozinha no mesmo sítio, onde tinha de atravessar uma varanda para chegar à casa de banho, partilhada com vários hóspedes desconhecidos. Noutra zona, encontrou um quarto por 200 euros, onde a senhoria lhe pedia que assegurasse a renda de toda a casa e gerisse os restantes arrendatários. Tudo o resto, ascendia aos 300 e 400 euros. Uma impossibilidade, diz: “Não posso pagar esses valores.”
Daniela não está no epicentro dos preços impossíveis. Mas não anda longe disso. De acordo com dados da plataforma Uniplaces, é em Lisboa que se encontra a renda média de um quarto mais elevada em 2018: são 485 euros mensais (mais 26 do que no ano anterior). O Porto é a segunda cidade mais cara para universitários: o valor médio anda nos 407 (mais 24 do que em 2017). E quem pensa que é coisa de cidades grandes, desengane-se: o valor médio nacional no primeiro semestre do ano andou nos 451 euros.
Alice Rodrigues trocou Coimbra por Lisboa para terminar o mestrado em Direito. No centro do país, pagava 200 euros por um quarto, em Lisboa o melhor que encontrou foi um no Areeiro por 330. Divide o apartamento com a própria senhoria, sem contrato assinado. E obedece às suas estranhas leis: se chegar tarde a casa deve tirar os sapatos para não fazer qualquer ruído, se quer ir à casa de banho de noite é certo que terá sermão na manhã seguinte. Ligar um aquecedor é proibido e levar alguém a casa está fora de questão. Alice só tem autorização para se movimentar entre o quarto, a cozinha e a casa de banho. A sala está interdita.
Há coisa de três meses cansou-se. Voltou aos sites de imobiliário, à busca permanente. E aumentou o espanto com aquilo que ia vendo. Ao anúncio de um quarto em Alvalade por 650 euros — quase mais 100 do que o salário mínimo em Portugal — nem se deu ao trabalho de responder. Encontrou um por 400 que teria de partilhar com mais três raparigas e onde era proibido ter visitas. Quartos sem janela viraram “tendência”. Visitou outro, sem mesa na sala de jantar, apenas na varanda, e com patelas de remédio para ratos espalhado em todo o lado. 350 euros. A procura continua, mas a esperança é pouca: "O turismo e alojamento local estão a tornar a vida em Lisboa insustentável. Estamos a ser escorraçados da cidade."
Os relatos multiplicam-se. Um quarto com varanda e vistas para a Torre de Belém custa 650 euros. Um T3+1 “excelente para estudantes” por 2500 euros. Um T7 em Coimbra por 250 ou 300 euros por quarto, sem ou com ar condicionado. Em Aveiro, uma divisão por 380 euros. Em Braga, por 300. Às vezes, quartos que são “vãos de escadas”. Ao email do P3 chegaram denúncias de geografias variáveis — alguns não querem revelar o nome verdadeiro, quem aceita falar não quer ser fotografado. Carolina Malhão, já licenciada em Ciências Biomédicas e a preparar a candidatura a Medicina no próximo ano, estende o mapa até ao sul: “Aqui no Algarve as coisas também não estão fáceis.”
Está no sul há cinco anos e já mudou de casa várias vezes. Na primeira moradia onde viveu, casa enorme dividida em várias, havia 15 pessoas, com senhoria incluída e gente a viver num anexo no jardim. A 160 euros por mês a cada uma, sem conta da luz incluída, “é só fazer as contas”: 2400 euros mensais de rendimento. E as regras eram de gabarito semelhante ao preço: não se podia tomar banho depois das 22 horas, não se podia convidar ninguém para jantar. Muito menos para dormir. Noutro apartamento, onde pagava 250 euros por um quarto, e a utilização da caixa de correio estava interdita, o senhorio era visita habitual na casa. Um dia, estava Carolina de roupa interior e t-shirt e ele abriu a porta. Foi a gota de água.
Há tempos, viu um anúncio de uma divisão por 330 euros sem despesas. Contactou a senhoria. E de resposta recebeu um questionário onde, entre outras coisas, se pedia que o candidato ao espaço se “descrevesse numa frase”. Passou a primeira fase. Mas a casa não passou a seguinte. Se Carolina Malhão, 23 anos, quisesse levar lá alguém durante o dia, uma “visita externa” como lhe chamava a proprietária, teria de pagar cinco euros. Se quisesse pernoitar, o preço subia aos 10 euros. No “contrato ilegal”, havia ainda a indicação de que podia visitar a casa, para verificar a limpeza, duas a três vezes por semana. No centro de Faro, contou a proprietária a Carolina com toda a naturalidade, tinha um T2 por 900 euros. O quarto com cama de casal seria arrendado por 500 euros a duas pessoas — mas casais não eram aceites.
Inês Lopes, natural de Setúbal, costuma dizer que encontrou “um achado” em Lisboa: são 350 euros por um quarto numa casa com cinco divisões e seis pessoas. Quando ali foi parar, a mãe ainda tentou regatear o preço. Sem sucesso. Quando pediu recibo, comunicaram-lhe o que parece ser habitual: nesse caso eram mais 23%. “Se não quiser temos uma lista de espera enorme: é pegar ou largar”, avisou o proprietário. Embarcou numa situação de irregularidade por não ter outra hipótese.
A apenas um ano de terminar o curso de Engenharia Física Tecnológica, no Técnico de Lisboa, Inês vê-se mergulhada na desesperança. Há algum tempo que se inscreveu em tudo o que são grupos de arrendamento de casas e quartos — e isso foi a confirmação de um futuro pendente. “Mesmo depois de entrar no mercado de trabalho a minha única solução será partilhar casa. Possivelmente voltar a Setúbal”, lamenta. Chamam-lhe “a inflação”, diz Inês, mas essa “lei do mercado que se tornou aceitável” deixa todos “desprotegidos”: “Não há contratos, não há legislação. Isto não pode continuar assim.”
As residências universitárias contam com 13.971 camas — e isso garante alojamento para apenas 12% dos 113.813 alunos a estudar afastados de casa. Lisboa, Coimbra e Porto são as regiões com mais carência de oferta, revelou o diagnóstico do próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. No Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior, lançado em Maio, prevê-se que até 2021 haverá mais duas mil camas disponíveis.
Graça Pacheco foi estudante de Matemática Aplicada na Universidade do Porto há quase 40 anos. Era uma outra cidade, uma outra realidade. Teve um lugar numa residência universitária, mas lembra-se bem de isso já ser poiso apenas para alguns. E de muitos colegas terem problemas para encontrar casa. A diferença, aponta, “é que não havia tanta ganância”. Palavra de mãe de três, dois ex-estudantes e uma ainda nas salas de aulas.
Quando há 12 anos a primeira lhe seguiu as pisadas, trocando Mirandela pelo Porto, encontraram solução na casa de uns familiares. Mas seis anos depois, quando o irmão do meio se fez caloiro, já não cabiam todos. Pensaram até em comprar, mas só encontravam “cubículos com condições miseráveis”. Viraram-se para os quartos, com a ajuda de agências imobiliárias. “Mostraram-me coisas que me fizeram entrar em pânico só de imaginar os meus filhos lá dentro”, recorda. “Nem para animais dava, quanto mais para pessoas! Um cheiro a mofo e humidade impossíveis. Viviam lá dois rapazes, não sei como não ficavam doentes”. Ela protestou com o agente:
— Não têm vergonha de mostrar isto?
— É aquilo que temos.
A filha mais nova de Graça está agora no terceiro ano de Medicina na Universidade de Coimbra. Vive num “quarto minúsculo” por 200 euros, sem despesas. Até surgir algo melhor. Se surgir algo melhor. Graça Pacheco põe-se a pensar nas “dificuldades que muitos estudantes devem enfrentar” com os custos impossíveis da habitação. Com os salários mínimos e médios de Portugal, ter filhos na universidade tornou-se uma equação para a qual a matemática não vê solução. Serão os senhorios sem leis o início da narrativa dos estudantes sem futuro?