Haddad, entalado entre Lula e a guerra das fake news de Bolsonaro
É difícil apresentar-se a votos em lugar de outra pessoa, ainda mais quando essa pessoa é idolatrada e odiada quase em partes iguais pelo povo. Com Bolsonaro à frente nas sondagens, o candidato do PT tenta firmar a sua posição para a segunda volta.
Com o domingo das eleições a aproximarem-se, Fernando Haddad, o candidato ungido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) para disputar o cargo de Presidente - fazendo as vezes de Lula da Silva, condenado, preso e sem poder votar -, sofre para se afirmar. Por culpa sua, ou por culpa da estratégia escolhida pelo PT, que decidiu fundi-lo com o ex-Presidente sob o já célebre lema “Lula é Haddad, Haddad é Lula”? Em São Paulo, onde Haddad foi prefeito, conhecem-no e não é popular.
“Antes eu votava PT mas não escolheram uma pessoa leal. Haddad não tem um projecto que inclua aquilo de que estamos a precisar”, diz a enfermeira Joyce Kathenen, de 20 anos, que faz uma pausa sentada num murete da Praça da República, um grande redondel com piso de tijoleira branco avermelhado e árvores altas no velho centro da cidade de São Paulo. O rabo-de-cavalo, T-shirt verde larga e mochila dão-lhe um ar de estudante. “Formei-me numa escola de saúde onde faltava muito material, nem sequer havia seringas para fazer diluições”, explica.
Antes Joyce Kathenen votou no PT, mas Haddad é um político demasiado centrista – ao contrário do que os media repetem em cadeia e do que os políticos que se opõem ao PT professam, o partido de Lula está muito longe de ser um perigoso radical de esquerda, ou comunista. E Fernando Haddad nem pertence às correntes mais à esquerda do PT. Kathenen prefere Guilherme Boulos, o candidato do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – considerado o partido mais à esquerda no Parlamento –, mas ainda não se decidiu completamente.
“Poste” ou sucessor?
A conversa nesta praça num dia nublado – normal nesta grande metrópole do Sul, a oitava maior região metropolitana do mundo – ilustra alguns dos problemas de Fernando Haddad, que pena para se definir ou como “poste” de Lula, alguém sem peso específico que é apenas um fantoche do ex-Presidente, ou como um verdadeiro sucessor de Lula, com voz activa na definição de políticas, ainda que tenha sido ele o autor do programa de governo apresentado para estas eleições.
Parte do eleitorado, no entanto, vê Haddad como o representante da democracia face a Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita e que representa as forças mais retrógradas do Brasil, incluindo elogios à ditadura militar.
A última sondagem do instituto Datafolha, divulgada quinta-feira à noite, antes do último debate entre os candidatos – fora Bolsonaro, que não foi autorizado pelos médicos a comparecer –, e que contabiliza apenas os votos válidos, ou seja excluindo os votos nulos e brancos, dá 39% ao capitão reformado do Exército e 25% ao candidato do Partido dos Trabalhadores nas eleições de domingo. Para uma segunda volta, surgem em empate técnico, com 44-43%.
Em São Paulo, a cidade onde foi prefeito, Haddad está mal colocado nas preferências dos eleitores. Bolsonaro tem 41%, enquanto no segundo lugar, com 16%, estão empatados Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) que deixou o cargo de governador para se candidatar à presidência, e Fernando Haddad. Este foi derrotado quando tentou a reeleição em São Paulo, em 2016, por João Dória – que é do PSDB e agora concorre a governador, mas apoia Bolsonaro.
Nas redes sociais, espalha-se entre os apoiantes de Bolsonaro algo a que não se pode chamar propriamente uma notícia, mas cujo título é “Fernando Haddad é o pior prefeito do Brasil”. Tudo para ajudar a criar uma dinâmica de crescimento do apoio ao ex-capitão e deputado federal há 27 anos para que consiga uma vitória logo na primeira volta – que passou a ser o objectivo confesso da campanha de Jair Bolsonaro.
O ausente presente
O último debate entre os candidatos às presidenciais, realizado quinta-feira à noite, na TV Globo, com a ausência de Bolsonaro - ainda convalescente da facada logo no iníco da campanha -, seria uma oportunidade para convencer os últimos indecisos. E são ainda muitos, fala-se em cerca de 25%, incluindo eleitores que já fizeram uma escolha mas podem ainda alterar o seu voto. Mas não houve nada de muito dramático.
Haddad esteve na berlinda, e foi interpelado por Marina Silva (Rede, ecologista), que está a deslizar para o fundo da ladeira das intenções de voto, a fazer o mea culpa da governação do PT que todos os outros partidos exigem. Mas Haddad não pode trair o seu partido e dizer que tudo foi errado. Relembra apenas todas as entrevistas e declarações que já fez apontando coisas erradas, coisas com as quais não concordou – que não parecem ser suficientes para amaciar o coração ferido de Marina Silva, que foi ministra do Ambiente de Lula da Silva mas saiu ressentida com o PT.
De Álvaro Dias, um senador que foi do PSDB e agora é do Podemos e tem intenções de voto residuais, Haddad teve uma hostilidade constante. A única agenda de Dias, ex-governador do Paraná – cuja capital é Curitiba, onde está preso Lula da Silva – é falar da corrupção do PT, da “organização criminosa”. Chega a ser cómico, de tão exagerado. Desperdiçou oportunidades de fazer perguntas aos adversários porque ficou a destilar veneno, na sua voz rouca e forte. Acabou por ser repreendido por Haddad: “O senhor devia ter uma melhor compostura neste debate... a fazer piadas com coisas que não têm graça.” Voaram chispas entre os dois candidatos.
Críticas a Bolsonaro houve muitas, até porque o candidato ausente resolveu pesar sobre o debate de uma forma desleal: deu uma entrevista à TV Recorde, propriedade do bispo Edir Macedo (que o apoia), da Igreja Universal do Reino de Deus, transmitida à mesma hora que se iniciou o debate na Globo. De tom amigável, sem o confrontar com perguntas difíceis, mostrando um homem de ar cansado, que tinha de interromper a sessão de perguntas após dez minutos para descansar a mando de um enfermeiro, a entrevista contribuiu para construir a imagem de mártir, de um político que sofre e se esforça para o bem do povo – o homem providencial de que o Brasil precisa.
“Porque é que eu sou tão mau, quero o mal de todo o mundo, se eu só quero a união de todos, sempre combati a corrupção”, interrogava Bolsonaro, auto-santificando-se.
Durante a tarde, Bolsonaro divulgou um vídeo no YouTube com vários apoiantes, em que faz de moderador de várias intervenções, incluindo do influente pastor Silas Malafaia. Malafia encadeia ideia atrás de ideia de forma incoerente mas entusiástica.
“O Cristianismo não é religião, é ideologia, é a tradição de base do Ocidente, da Europa, e esses psicopatas a querem destruir para implantar um modelo esquerdista e a sociedade brasileira rejeita isso, independentemente da religião, porque tem gente que pensa que a família não é só coisa de religião, família é coisa de espírita, de católico, de evangélico, gente, eles estão enganados, família uma coisa preciosa. Querem levar dos pais, Bolsonaro, a autoridade. Está na Constituição, na Convenção Americana dos Direitos Humanos, pertence aos pais a educação moral e religiosa dos filhos, como é que esses caras da esquerda querem destruir isso?”, diz Malafaia, de um fôlego.
Fake news em acção
A campanha do PT teve um despertar violento nesta última semana. Descurou o peso na formação de opiniões e decisão sobre o voto das fake news nas redes sociais, sobretudo no WhattsApp. Segundo o jornal Folha de São Paulo, os petistas preocupavam-se mais com as notícias e fazedores de opinião dos media tradicionais. As notícias falsas nas redes sociais eram consideradas demasiado absurdas para fazer mossa.
Mas as ideias falsas espalham-se como fogo na palha, com o entusiasmo que é demonstrado pelo famoso pastor evangélico Silas Malafaia. A demonstrar a sua eficácia, a popularidade de Bolsonaro cresceu, nesta última semana, entre as mulheres, um eleitorado que lhe é mais avesso. Sobretudo entre as eleitoras evangélicas e mais pobres, dizem as sondagens – as mais vulneráveis a uma campanha de fake news deste tipo.
Culpando estes ataques distribuídos nas redes pelo estancar da subida das intenções de voto em Haddad, e pela subida da rejeição dos eleitores ao seu candidato, o PT começou a retaliar esta semana com a sua própria campanha no WhattsApp. E a accionar a justiça para tentar travar a difusão de fake news. Começou também a fazer vídeos de propaganda que em vez de lembrar apenas feitos passados do Governo PT e promessas eleitorais, visa agora directamente Bolsonaro.
Será suficiente para recuperar força até domingo?
“Se Bolsonaro não ganhar ou não for à segunda volta é fraude”, diz o motorista Eliphas Levi, de 54 anos, descendente de judeus – uma comunidade que, segundo algumas notícias, apoia em grande medida o ex-capitão, embora isso seja contestado.
“Há técnicos de tecnologias de informação a dizer no YouTube que é possível fraudar a urna electrónica, embora os juízes do Tribunal Superior Eleitoral digam que é confiável. Mas foi o PT que os pôs lá. O Brasil está de saco cheio com esse comunismo”, remata.