A arrogância das cliques culturais
Se pensam que o mundo da política é o protótipo de intriga, então, se conhecerem melhor os meios “culturais”, tudo isso empalidece.
Eu sou administrador de Serralves pelo que tenho um conflito de interesses em falar aqui sobre o “caso” da demissão do antigo director do Museu de Serralves e curador da exposição Mapplethorpe (duas funções diferentes e com regras diferentes), que todos podem (e devem) ver para não falarem de cor. Não falarei do “caso” por muita vontade que tinha (e tenho) de o fazer.
Mas posso falar dos contorni, expressão italiana para designar os “acompanhamentos” do prato principal — porque os contorni são muito reveladores de algo que não é de agora: a insuportável presunção e arrogância de muitos “homens e mulheres da cultura”, “artistas” e “intelectuais”, e jornalistas “culturais” que face a eles têm todas as complacências e são incapazes de um reporting que siga as regras de distanciamento e equilíbrio da profissão. Todos acham que só eles podem falar da “cultura” e da “arte” e sem ser eles só há ignorantes, boçais, provincianos, censores, que violam uma frase bíblica que serviu de mote para vários quadros renascentistas: “Noli me tangere.” (Que ninguém me toque.) Querem citações eruditas, também sei fazer.
Na escolha dos adjectivos gentis com que estas cliques me classificaram nos últimos dias eu não quis usar todos no parágrafo anterior. E não quis porque sou saloio (aliás, seria mais rigoroso “tripeiro”), provinciano, pacóvio, não tenho “mundo”, não colecciono arte, só papéis efémeros, tenho a cabeça na Idade Média, sou homofóbico e detesto ver expostas as partes anatómicas do corpo humano como pénis e vaginas, ânus e bocas, arrepio-me com correntes, couro e látex, e sou submisso à ordem moral estabelecida, dominado pela Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Muito bem, estamos entendidos, é melhor deixarem de ler o resto do artigo, porque vem de alguém particularmente desclassificado para tratar destas coisas da “cultura”.
Sucede que uma das coisas piores deste mundo é esta arrogância, a que se associa muita inveja e ressentimento, que é, como se sabe, uma combinação muito poderosa. E, se pensam que o mundo da política é o protótipo de intriga, facas nas costas, má-língua, pequenas cortes que se digladiam e geral mediocridade, então, se conhecerem melhor os meios “culturais”, tudo isso empalidece face às práticas dominantes nas casas dessas cliques. Seria injusto dizer que não há ninguém que escape, mas são a excepção à regra.
Sou defensor de um “Estado mínimo” nas áreas em que as opções de financiamento derivam de opções de gosto, e gostaria de ver o Estado (e os governos) bem longe dessas opções, como acontece em particular na tradição anglo-saxónica. Nunca fui um defensor da política Malraux-Lang, para transformar (como governos e muito autarcas sabem) a cultura como instrumento intocável de propaganda nacional, política e local. Eles sabem bem usar o noli me tangere, para fazer muita coisa sem que haja escrutínio e crítica.
Eu, por estranho que pareça, até sou defensor do “1% para a Cultura”, só que talvez não o gastasse nos mesmos sítios e nas mesmas coisas, e sou de há muito defensor de uma política, reaccionária sem dúvida, sobre a concentração dos recursos escassos na salvaguarda do nosso património artístico e cultural, num país que tem muito património construído a “desconstruir-se”, faz pouca arqueologia, e não tem sequer um corpus da sua grande literatura disponível quer em edições críticas, quer em edições populares de qualidade e dá pouca atenção ao ensino artístico, quer nas escolas de Arte, Design e Arquitectura, quer nos conservatórios.
Parte desses 1% devem também ir para as indústrias culturais, que ganhariam em ser tratadas também pelo seu valor económico. E também para instituições, pela sua reputação internacional (e por muito que custe a muitos só Serralves tem e não é fácil consegui-lo) e pelo seu trabalho de colocar à disposição dos portugueses o melhor da arte internacional contemporânea, pela salvaguarda desse mesmo património e pelo efectivo esforço pela democratização da cultura não só no Porto, mas numa dimensão crescentemente nacional. Acresce que Serralves também não é o melhor exemplo do “1% para a Cultura”, porque é uma instituição única em Portugal pela parte do seu financiamento pela sociedade civil. Não é por acaso que é uma instituição do Porto, onde as elites empresariais desde antes do 25 de Abril tinham um genuíno interesse em apoiar a cultura da cidade, como mostram os exemplos da Árvore, do Teatro Experimental, de encomendas a arquitectos no Porto, que tem múltiplos exemplos de construção moderna pagos por privados, enquanto em Lisboa a maioria das encomendas eram estatais e privilegiavam os arquitectos próximos do regime. É, o Porto é diferente, como Serralves é diferente.
A arrogância cultural dos últimos dias veio ao de cima, mas está sempre lá. É, disfarçadamente, um conflito por recursos e território que ganhava em ser enunciado com clareza, porque isso permitia uma discussão mais séria, mas para o fazer a jactância cultural não serve, nem o toque a rebate, quando sentem o cheiro a sangue. Mas serve para intimidar muita gente que devia falar, mas que tem medo de perder a medalha de bom comportamento “cultural”, de passarem também eles próprios por saloios. Sucede que eu não quero fazer parte desse clube covarde e para mim vem de carrinho.