Foram 17 as falhas fatais no combate ao fogo de Pedrógão

Além de dois dirigentes da Protecção Civil e de um comandante de bombeiros acusados de 63 homicídios negligentes e 44 ofensas à integridade física há dois subdirectores da EDP Distribuição a responder pelos mesmos crimes. Três quadros da Ascendi e três autarcas também acusados.

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Na EN236-1, que ficou conhecida como "estrada da morte", morreram 34 pessoas. Adriano Miranda

Nunca se usa a palavra incompetência. O Ministério Público prefere identificar 17 “actos e omissões” de três responsáveis operacionais no combate ao fogo de Pedrógão Grande, ocorrido em Junho do ano passado, que “contribuíram para que o incêndio em questão não fosse contido numa fase inicial e enquanto tal ainda era possível”. Tal, diz, permitiu que o fogo se “propagasse e, assim, atingisse e provocasse a morte e/ou ferimentos” às vítimas.

Nas 212 páginas de acusação do caso, a procuradora Ana Simões detalha as 17 falhas que sustentam a responsabilidade criminal dos dois então responsáveis do comando distrital de Leiria da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), Sérgio Gomes e Mário Cerol, e do comandante dos bombeiros de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut, que assumiram o combate ao fogo, logo a 17 de Junho, o dia em que o mesmo deflagrou. Cada um deles está acusado por 63 homicídios negligentes e 44 ofensas à integridade física por negligência, 14 das quais graves.

Exemplo dessas falhas, sustenta Ana Simões, é o facto de o então comandante distrital de Leiria, Sérgio Gomes, - hoje adjunto do comando nacional na ANPC - não ter mobilizando logo na resposta ao alerta do fogo um segundo helicóptero e de não ter pré-posicionado meios no distrito, apesar da meteorologia ter previsto para aquele dia um índice de risco de incêndio muito elevado para concelhos como Pedrógão Grande. Defendendo que o comandante distrital devia ter accionado mais meios para o ataque inicial, o Ministério Público critica o facto de Sérgio Gomes ter optado por mobilizar “meios de pontos longínquos do distrito, relativamente ao ponto de início do incêndio (...), os quais tiveram que percorrer grandes distâncias para ali chegar”. Por outro lado, nota que foram accionados grupos de reforços em Santarém e Castelo Branco, mas não o único que estava em prontidão imediata, em Castelo Branco, localizado a cerca de uma hora do incêndio.

Comandou a partir do hospital

O Ministério Público reconhece que naquela tarde Sérgio Gomes estava autorizado pelo comandante nacional a estar no Hospital de Torres Vedras para apoiar um filho, que tinha sido operado na véspera a um braço, mas desvaloriza esse facto. Isso, porque mesmo assim, foi o comandante distrital que accionou meios e tomou decisões a partir do seu telemóvel.

Também o comandante dos Bombeiros de Pedrógão que esteve perto de cinco horas à frente das operações de combate, no início do fogo (o alerta foi dado às 14h39), e o segundo comandante distrital, Mário Cerol, que o apoiou durante cerca de duas horas e depois o substituiu, são alvo de muitas críticas. A acusação diz que apesar de Augusto Arnaut ter chegado ao terreno cerca de meia hora após o alerta, só uma hora e um quarto depois instalou “de forma rudimentar” o posto de comando numa associação local, apenas com um computador portátil com “cartas militares desadequadas” e a informação “manuscrita em papéis”.

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Recorda que a viatura de comando e comunicações só chegou a Pedrógão por volta das 18h e foi instalada num local, que depois se constatou não ter acesso à Internet. Por isso, Augusto Arnaut, já apoiado por Cerol, decidiram reposicionar a viatura, mas escolheram um local que não oferecia condições. Isto devido “ao vento, fumo e fagulhas que o fustigavam em virtude de se situar na cabeça do incêndio”. Tal obrigou a uma nova reposição da viatura.

“Neste período de tempo, cerca de duas horas, registaram-se inúmeras chamadas de pedido de socorro e convergiram para o teatro de operações os meios de reforço de combate que, entretanto, haviam sido solicitados. Contudo, o processo de relocalização do posto de comando obstou a que aqueles pedidos fossem considerados e respondidos, bem como aqueles meios fossem organizados, atribuindo-lhes missões e, bem assim, fosse delineada uma estratégia de acção”, lê-se na acusação.

Cinco horas após o alerta de incêndio, o posto de comando ainda não tinha dois instrumentos fundamentais, um que permitia fazer uma previsão meteorológica para o local e outro que antecipava cenários a uma maior distância e sugeria medidas a tomar. A ferramenta de previsão do tempo permitiria perceber que o vento mudara de rumo e aumentara de intensidade, o que fazia com que o incêndio se desenvolvesse para Oeste em direcção à EN236-1, onde morreram 34 pessoas. Mas mesmo depois da informação estar disponível não se mudou de estratégia. “A não actualização do plano estratégico de acção conduziu a uma gestão meramente reactiva do incêndio, sem qualquer estratégia ou planeamento, que resultou numa ausência de verdadeiro combate, arruinando irremediavelmente a hipótese de salvaguarda daquelas povoações e populações”, refere a procuradora. Tal impediu que fossem emitidos avisos à população a dizer como deviam proceder e que fosse solicitado o corte da EN236-1.

Igualmente acusados por 63 homicídios negligentes e por 44 crimes de ofensa à integridade física por negligência estão dois subdirectores da EDP Distribuição por não terem mandado limpar dois troços da linha de média tensão Lousã-Pedrógão, onde ocorreram duas descargas eléctricas que estiveram na origem de dois incêndios em Pedrógão Grande, um que começou em Escalos Fundeiros e outro em Regadas, que acabaram por se fundir.

Apesar de considerar que foi uma descarga eléctrica na linha de média tensão da EDP que esteve na origem dos dois fogos, a procuradora diz que não foi possível perceber o que esteve na base dessa descarga (uma anomalia mecânica ou um fenómeno natural, como o impacto de um relâmpago). E, por isso, não imputa a ninguém o crime de incêndio florestal.

Conclusões diferentes

A magistrada recorda que as três entidades que analisaram as concretas causas dos fogos – a Polícia Judiciária, a equipa liderada pelo professor Xavier Viegas e a Comissão Técnica Independente - apresentaram conclusões diferentes. "Não nos é possível, pelo menos com as necessárias segurança e certeza jurídicas, subscrever uma em detrimento da outra", justifica. Dos 18 arguidos do caso, seis não chegaram a ser acusados. 

Também três quadros da Ascendi Pinhal Interior, um deles da comissão executiva da empresa, respondem por 41 crimes, 34 dos quais homicídios negligentes. Em causa está o facto de a Ascendi, que tem a subconcessão de estradas do Pinhal Interior, não ter cumprido a responsabilidade de limpar as bermas da Estrada Nacional 236-1, onde morreram 34 pessoas. A lei exige que seja retirada a vegetação numa largura não inferior a 10 metros, em cada um dos lados.

A mesma justificação serviu para acusar o presidente da câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu, (por dois crimes de homicídio por negligência e um de ofensa à integridade física por negligência grave), o ex-presidente do município de Castanheira de Pêra, Fernando Lopes (10 crimes de homicídio por negligência e um de ofensa à integridade física por negligência) e o ex-vice-presidente da autarquia de Pedrógão Grande, José Graça (sete crimes de homicídio por negligência e quatro de ofensa à integridade física por negligência).

Pelo mesmo número de crimes responde uma engenheira florestal, a única a integrar o Gabinete Técnico Florestal de Pedrógão Grande. Em causa estão mortos e feridos em caminhos municipais ou estradas nacionais cuja limpeza era da responsabilidade daqueles municípios.

Em relação aos feridos, o despacho explica porque só se avançou com a imputação de 44 ofensas à integridade física, apesar de ter havido mais de duas centenas de vítimas. É que como o ilícito depende de queixa e os visados optaram por não a fazer, o Ministério Público não pôde avançar.

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