Sem complexos, Instituto Diplomático homenageia ministro de Salazar
Nos 100 anos do nascimento de Franco Nogueira, último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, família doa espólio de centenas de milhares de documentos que nunca foram lidos por nenhum historiador.
Convencido de que a “política africana” do regime de Oliveira Salazar não era realista, em 1964 — quando a guerra em Angola ia no terceiro ano e o regime perdera o apoio de muitos aliados — o jovem diplomata Francisco Grainha do Vale pede uma audiência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira.
“Achei que devia dizer alguma coisa, por uma questão de lealdade”, conta o agora embaixador reformado, de 86 anos. Franco Nogueira, que defendia o colonialismo com paixão, aceitou e ele, “com cuidado, disse-lhe que ser ministro era muito interessante, mas que havia dificuldade em atingir o resultado”. Resposta: “Mas o que quer que eu faça? Quer que entregue Angola aos americanos ou aos russos?”; “estava a pensar mais numa solução diplomática, que não fosse tão drástica”; “enquanto nós lá estivermos, temos que ter a porta bem fechada: sugere que se entreabra a porta. No dia em que fizermos isso, é o desastre”. Na sala estavam o ministro da Defesa e o secretário de Franco Nogueira, António Bandeira. É ele quem, depois de os ministros saírem, lhe pergunta: “’E agora, para onde é que vais?’ E eu respondo: ‘Estava a pensar ir jantar a um bistrô na Ópera.’ E ele: ‘Não é isso: para onde é que vais trabalhar? Depois do que disseste ao ministro, vais ter de sair da carreira!’.”
Francisco Grainha do Vale, que tinha 32 anos, conta o episódio na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades. Os seus colegas embaixadores — alguns dos quais trabalharam com Franco Nogueira e eram amigos dele — estão a sair. A sala encheu-se para a cerimónia de evocação dos 100 anos de nascimento do último chefe da diplomacia de Salazar mas, de todos os que ali estão, ele terá sido o único a questionar frontalmente aquilo que, no Estado Novo, se chamava “política ultramarina”. “O que mais me impressionou é que, nos anos a seguir, sempre que nos cruzávamos num corredor, ele vinha falar comigo, um mero 1.º secretário de 30 anos, para discutir alguma notícia do dia que tinha lido nos jornais.”
Na sua intervenção no púlpito, o embaixador Marcello Duarte Mathias falou da “alma livre e espírito independente” de Franco Nogueira, “à semelhança de tantos que nesta casa serviram Portugal”, e sublinhou como sendo “saudável” a evocação organizada pelo Instituto Diplomático, que funciona na parte sul do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “É corajoso. Vivemos no politicamente correcto e no ortodoxo. Como serviu o Estado Novo, há logo reservas. Mas foi um grande diplomata e deve ser homenageado.”
Ainda é difícil, concordam alguns diplomatas presentes, de várias simpatias políticas, ouvidos pelo PÚBLICO. “Sobre a II Guerra Mundial já há algum consenso, embora ainda não haja sequer unanimidade entre os diplomatas sobre o cônsul Aristides de Sousa Mendes, porque um diplomata tem que seguir instruções e há quem considere que ele não devia ter feito o que fez. Quando se chega ao ultramar, é muito difícil: não há recuo para se analisar com frieza”, diz o embaixador Manuel Côrte-Real, ex-director do Instituto Diplomático e chefe do Protocolo do Estado e hoje responsável pela missão do património e bens do ministério.
Margarida Lages, directora do Arquivo Diplomático ao qual a família doou esta segunda-feira os papéis de Franco Nogueira, não hesita: “Não estamos a celebrar um fascista, mas uma pessoa determinante da nossa história. É importante saber como funcionava a diplomacia no Estado Novo, com quem os diplomatas falavam e o que faziam. Esta doação vai iluminar o acervo que temos.”
Vinte e cinco anos após a morte de Franco Nogueira, a família doou o espólio do antigo ministro. São centenas de milhar de documentos, talvez um milhão, e nunca foram lidos por nenhum historiador. Carlos Gaspar, investigador do IPRI, defendeu que Franco Nogueira teve uma “carreira diplomática brilhante e pouco convencional” e, “ironia do destino”, ajudou a criar “uma capacidade excepcional dos aparelhos da política externa portuguesa” que “sobrevive intacta” e “é penhor dos seus sucessos nas Nações Unidas nos últimos anos, como ficou demonstrado nas campanhas da diplomacia portuguesa por Timor-Leste, nas sucessivas eleições de Portugal para o Conselho de Segurança, ou nas campanhas de António Guterres para Alto-Comissário dos Refugiados e para secretário-geral das Nações Unidas ou de António Vitorino para a Organização Internacional das Migrações (OIM).”