Os mistérios de Tancos
Um ano depois da notícia do desaparecimento de diverso material de guerra nos Paióis Nacionais de Tancos são ainda mais as dúvidas do que as certezas sobre o caso. As armas apareceram de forma tão surpreendente como sumiram e há muitas perguntas sem resposta, mistérios por desvendar.
Há um ano os portugueses sabiam que tinha desaparecido uma quantidade importante de diverso material de guerra dos Paióis Nacionais de Tancos. O armamento acabaria por aparecer em Outubro do ano passado, graças a uma denúncia anónima e de forma tão insólita como tinha desaparecido. O Exército deu o assunto por encerrado. O ministro da Defesa remete qualquer declaração sobre o assunto para o relatório que apresentou no final de Março deste ano no Parlamento, mas que nada de concreto diz sobre o sucedido. Ainda decorre uma investigação no Ministério Público, mas passado um ano são ainda mais a dúvidas do que as certezas sobre este grave incidente que comprometeu a credibilidade do Estado português e das suas Forças Armadas. O PÚBLICO revisita os muitos mistérios que subsistem sobre o que sucedeu em Tancos.
Quando
A 28 de Junho de 2017 os portugueses ficam a saber que faltava material de guerra nos Paióis Nacionais de Tancos. O Exército deu conta que tinha desparecido um verdadeiro arsenal, que incluía explosivos, granadas, um foguete anticarro, gás lacrimogénio e munições diversas. Desde o dia em que soube do insólito sumiço até hoje, ninguém, nem nenhum relatório, precisou a data (ou as datas) em que ocorreu a retirada do armamento.
Como
Como foi retirado o material de guerra de Tancos é outros dos mistérios por esclarecer. Saiu todo de uma vez? Foi saindo em “fatias”? Entrou alguma viatura no perímetro dos paióis para o transportar para o exterior? O transporte foi feito à mão? São muitas as perguntas que persistem sobre o desaparecimento do armamento. E não vai ser fácil encontrar as respostas. A videovigilância estava avariada há vários anos, as vedações estavam velhas e muitas delas já ferrugentas, as torres de vigilância, igualmente velhas, não eram usadas e, muitas vezes, as patrulhas de segurança eram realizadas com o mínimo de homens ou nem sequer eram feitas.
Quem
O Exército concluiu em Janeiro deste ano os processos disciplinares abertos no ramo, castigando quatro militares. A pena mais greve (proibição de saída da unidade por 15 dias) foi para um sargento, por não ter mandado fazer as rondas de segurança. Um oficial que poderia ter feito a ronda e não fez teve uma repreensão agravada. Um praça viu-lhe aplicada uma repreensão simples por ter preenchido mal a papelada da entrada e saída de material de Tancos e um outro ficou impedido de sair unidade durante seis dias por incitamento a declarações falsas. Nenhum foi responsabilizado directamente pelo desaparecimento das armas. Nem eles nem ninguém. O Exército já deu a investigação a Tancos como encerrada, mas ainda decorre uma investigação no Ministério Público. Porém, até hoje, não foi revelada a mais pequena pista sobre quem será o responsável, ou os responsáveis, pelo desaparecimento das armas.
Sobre os autores, uma pergunta importante ainda está também à espera de resposta: houve militares envolvidos? Muito especialistas e até membros das Forças Armadas disseram que era impossível haver um furto sem o envolvimento de alguém dentro da unidade ou com conhecimento profundo do perímetro e das rotinas e procedimentos internos.
Há factos já apurados que apontam nesse sentido. Dentro das instalações de Tancos existiam quase 20 paióis e apenas três foram assaltados, precisamente aqueles que tinham material relevante. Os restantes, alguns vazios, outros com pouco material, ficaram intactos depois do desaparecimento das armas em Junho.
Entre o material desaparecido havia explosivos e com os explosivos desapareceu também o material necessário para que eles pudessem ser accionados, o que indica que a escolha foi criteriosa.
Armas aparecem, mas…
A 31 de Outubro do ano passado o material desaparecido em Tancos aparece a cerca de 25 quilómetros do perímetro militar, abandonado num terreno na zona da Chamusca. A recuperação não se ficou a dever às investigações em curso pelo Exército, através da sua Polícia Judiciária Militar (PJM), nem à investigação conjunta entre militares e Ministério Público, através da Polícia Judiciária (PJ). Foi, segundo revelou o Exército, uma chamada anónima para a GNR, que depois alertou a PJM, que deu conta do local onde se encontrava o armamento.
O chefe de Estado Maior do Exército (EME), general Rovisco Duarte, revelaria na tarde desse dia que o material encontrado era o que tinha desaparecido. Apenas faltavam algumas munições de 9 milímetros, mas, em “compensação”, tinha surgido uma caixa de petardos que não estava na lista oficial do equipamento desaparecido em Junho. Uma situação “compreensível”, disse Rovisco Duarte, porque é comum haver “problemas de registo” daquilo a que os militares chamam “material volante”. Material que é utilizado na instrução, podendo ter sido registada a sua saída e não ter sido na realidade consumido por várias razões, como por exemplo atmosféricas, regressando ao paiol.
Este aparecimento do armamento, quase tão insólito quanto o seu desaparecimento, levanta também algumas dúvidas. Há quanto tempo estava o armamento naquele terreno abandonado na Chamusca? Quem fez a verificação de que o material encontrado era mesmo o desaparecido, além da PJM? Havendo uma investigação conjunta da PJM e da PJ, porque não foi a PJ ao local, juntamente com a PJM?
José Manuel Neto Simões, capitão-de-fragata na reforma, escreveu, num artigo de opinião no PÚBLICO no dia 15 deste mês o seguinte: “O aparecimento [do armamento] não resultou da investigação, pelo que, no mínimo, é um episódio inusitado com objectivos de carácter duvidoso. E constitui um indício preocupante de manipulação dos factos, tendo em vista lançar um manto de obscuridade na tentativa de condicionar o inquérito, cuja investigação criminal é da responsabilidade do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP/PJ).”
E acrescenta. “Vai ao encontro da narrativa oficial de mistificação para que não haja demissões como ocorreram no Ministério da Administração Interna — responsabilização política pela deficiente gestão dos fogos de Pedrógão —, mesmo antes do apuramento de responsabilidades criminais!” O Exército, sempre pronto a responder quando algo que é escrito ou dito na comunicação social sobre o ramo falta à verdade ou está errado, não disse uma palavra sobre estas afirmações.
Houve mesmo um assalto?
No dia 10 de Setembro do ano passado, o ministro da Defesa, Azeredo Lopes, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, deu corpo a um rumor que há muito era cochichado nos meios militares e políticos: pode não ter havido um roubo em Tancos. Disse Azeredo: “Pode não ter havido furto nenhum”, porque “não existe prova visual, nem testemunhal, nem confissão”. “Por absurdo, podemos admitir que o material já não existisse e que tivesse sido anunciado… E isso não pode acontecer”, acrescentou.
As palavras causaram um levantamento político na oposição, mas as declarações do ministro foram sendo esquecidas, até porque o material que o Exército diz ter desparecido foi encontrado, como também garantem os militares. Não menos verdade é que foi o próprio Rovisco Duarte que, na altura da descoberta do armamento, admitiu existirem problemas nos registos de saída e entrada de material.
Um mês depois das palavras do ministro, Rovisco Duarte afirmava: “Tenho a certeza de que houve um furto. Não lhe chamemos assalto, chamemos um furto. (…) Tenho a certeza, na base dos dados das averiguações que foram conduzidas. Não tenho dúvidas nenhumas de que houve um furto.” “Estou convencido de que vão descobrir [os autores]. Se há provas, é mais complicado, mas isso não é comigo”, acrescentava, numa referência à investigação criminal ainda em curso.
Apesar destas certezas do chefe do EME, as dúvidas sobre a existência de um furto mantém-se ainda em muitas cabaças, nomeadamente na do autor do já citado artigo no PÚBLICO. “Vai fazer um ano que ocorreu o desaparecimento enigmático — furto, encenação ou mistificação — de material de guerra dos Paióis Nacionais de Tancos”, escreve José Manuel Neto Simões.