Só nunca lhe chamaram o que verdadeiramente era: uma jornalista

Devo à Lucília o apoio, os conselhos e as críticas que nunca me regateou anos a fio.

Foi há mais de 50 anos que uma rapariguinha do Barreiro entrou num velho edifício do Bairro Alto onde então existia um grande jornal, o Diário Popular a que Francisco Pinto Balsemão estava a dar uma alma nova. Entrou aquela porta, subiu aquelas escadas e nunca mais saiu deste mundo, pois fez-se uma mulher dos jornais. Naquela casa, depois no Expresso, que viu fundar, no Público, que ajudou a fundar, foi secretária, secretária de direcção, secretária de redacção, adjunta de direcção, só nunca lhe chamaram o que verdadeiramente era: uma jornalista. Sabia mais de jornais, tinha mais sentido de notícia, mais espírito crítico, vivia mais a actualidade e sabia apreciar melhor um bom texto, uma boa imagem ou uma boa solução gráfica do que a maioria dos jornalistas. Não tinha carteira profissional nem ela lhe fazia falta, mas todos sabíamos que para fazer girar os mecanismos invisíveis que fazem o milagre diário de construir um jornal era quase insubstituível – fosse para garantir que não havia erros nas palavras cruzadas (os erros que mais irritam os leitores), para assegurar a correcta decifração da letra miudinha e sumida de mais uma crónica de Eduardo Lourenço ou para descobrir o paradeiro da fonte a contactar.

Devo à Lucília o apoio, os conselhos e as críticas que nunca me regateou anos a fio, mas agora que partiu demasiado cedo e demasiado de repente, sinto que lhe devo sobretudo termos sempre adiado um seu regresso, para uma romagem de saudade, àquele velho edifício do Bairro Alto, o mesmo onde hoje trabalho no Observador. Achamos sempre que a doença não nos leva no dia seguinte e que podemos deixar para amanhã o que não parece urgente. Não é assim, pelo que esta última dívida é também a dívida de uma lição: na vida, tal como no jornalismo, nenhum atraso é permitido. 

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