Um Black Mirror de millennials

A possível definição desta peça hiperbólica pertence aos próprios Os Possessos. De 27 a 30 de Junho, O Novo Mundo existe na Culturgest e é um deserto onde tudo se pode projectar.

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Marco Mendonça

Na edição da Abacus, o monumental romance Infinite Jest, de David Foster Wallace, inclui uma nota (a 324) que se estende por sete páginas. Como defende o site Literary Hub, é uma nota que, deixada a pairar entre dois blocos de texto, vale por um capítulo inteiro, apesar de relegada para as últimas páginas do livro. Será um dos exemplos mais extremos da profusão de notas finais ou de rodapé a que Foster Wallace recorre com mestria e de forma desmedida, enxertando uma imensidão de informação nas suas obras. Em 2666, na publicação da Quetzal, Roberto Bolaño estende-se por 320 páginas na descrição das centenas de crimes que têm por vítimas as mulheres no deserto de Sonora, dedicando a quarta parte das cinco que compõem o tomo a uma experiência literária que testa o estofo do leitor e induz um estado de desespero e sufocação justificado pela especificidade temática.

Foster Wallace e Bolaño foram dois dos autores que alimentaram um clube de leitura montado pel’Os Possessos para lançar a criação de um espectáculo chamado O Novo Mundo – em cena na Culturgest, Lisboa, de 27 e 30 de Junho. Durante vários meses, os encontros semanais haviam de servir para discutir livros mas também para os seis autores do texto final – Daniel Gamito Marques, João Pedro Mamede, Leonor Buescu, Miguel Ponte, Nuno Gonçalo Rodrigues e Tiago Lima, grupo a que se juntava a actriz Catarina Rôlo Salgueiro nos debates –apresentarem cenas escritas a partir de temas lançados por João Pedro. Dois exemplos: baby boom e suicídio – nascimento e morte, fenómenos colectivos e decisões individuais, explosões e implosões.

“Aquilo de que estávamos à procura e que queríamos transportar para o teatro era um certo fôlego de raciocínio e de ideias levadas até ao fim”, diz João Pedro Mamede – fundador com Catarina e Nuno Gonçalo d’Os Possessos, e principal responsável pela encenação de O Novo Mundo. “Queríamos trabalhar monólogos, parentéticas, lidar com o excesso de informação que há nesse tipo de literatura e trazê-lo para aqui.” De Foster Wallace, Bolaño ou Zadie Smith – autora acrescentada por sugestão de Francisco Frazão, ex-programador de teatro da Culturgest, responsável pelo convite à companhia para apresentar na sala lisboeta um “espectáculo hiperbólico”, para um grande elenco – não resta no espectáculo senão uma memória distante. Essas referências, que ajudaram a encontrar um tom inicial para aquilo que imaginavam, foram-se esbatendo e diluindo nas 130 páginas que compunham o primeiro best of de cenas avulsas.

As 130 páginas foram depois esquartejadas até restar apenas um terço e foi a partir dessa dieta forçada que começaram a entrever um espectáculo que lidava com a condição dos millennials e com a busca pela fé. “Essa ideia dos millennials está sobretudo na angústia colectiva que é esta pergunta: Será que temos todo o tempo do mundo ou será que já não vamos a tempo?”, resume João Pedro Mamede. “Há também uma certa alienação e um esquecimento, algo que acaba por atravessar os sujeitos todos da peça.” Catarina Rôlo Salgueiro acrescenta a estas coordenadas uma inquietude, a necessidade de “estar sempre à procura de outro espaço que não este onde estamos agora”, e a efemeridade presente nos “contratos temporários, no trabalho e na forma como nos relacionamos com o outro”, em que tudo é a prazo.

Se a tesoura aplicada no texto foi inclemente, tê-lo-á sido ainda mais ao reduzir os 14 cenários originais a uma única localização: o deserto. Um deserto que é, na verdade, como se fosse uma sala branca, imaculada para nela tudo poder ser projectado. “Vejo. Um deserto. A perder de vista”, ouve-se, às tantas durante a peça. Mas logo se percebe que o deserto existe no lugar de um casino, o deserto pode ter uma mulher presa numas escadas, pode ser o lugar perfeito para montar uma esplanada, pode existir enquanto estrada com destino a um oásis. Este deserto, com um único cacto, vem também do deserto do real de Zizek – que, por sua vez, cita o filme Matrix – e que é sinónimo da “aridez da realidade”. Este deserto, que é espaço em branco para nele se imaginar qualquer sonho, é também testemunha do canibalismo de um par de turistas afectadas que se cansam da solicitude do seu empregado de mesa e resolvem devorá-lo sobre a mesa. Ali tudo se pode projectar. Mas nada dura.

Dormir e acordar

Após uma trilogia de peças focadas na cidade, numa soturnidade urbana que carregava sempre um evidente pessimismo, Os Possessos enveredaram, desta vez, por um texto que, sendo “um pouco Black Mirror de millennials, tem um laivo de esperança”. Nem que seja porque há personagens que desesperam com sede e são presenteadas de imediato com um oásis, porque há quem encontre Deus no fim da sua travessia, porque há reconciliação a sobrepor-se a um choque conjugal, porque há quem levite em direcção ao céu feliz por deixar a vida terrena.

Com a teia baixada para impor “uma espécie de cinemascope”, este O Novo Mundo pode, para quem muito necessitar de o situar no espaço, existir algures entre os Estados Unidos e o México, como se fosse um western fora de época. Mas não enfileira em qualquer lógica de distopia. Quando muito, está sobretudo alinhado com o presente, numa constatação de mudança de paradigma, empoleirado algures e tentando equilibrar-se no ponto em que uma verdade termina e se converte num outro sistema.

Esse movimento acarreta também uma reflexão sobre quem são Os Possessos e que teatro é o seu. Uma das respostas mais claras a essa pergunta é a de uma natureza de contínua mutação, mas em que a companhia parece zombar da precariedade da sua existência rodeando-se sempre de elencos alargados e processos criativos muito participados. “Este Novo Mundo”, cita Catarina de um dos ensaios, “é tão especial porque estamos a juntar vários tipos de teatro diferentes. E temos quase um representante de cada nova companhia: a Nídia Roque do Teatro da Cidade, o Miguel Cunha dos Auéééu.” A que acrescem ainda Isabel Muñoz Cardoso, Francis Seleck, Margarida Vila-Nova ou Filipa Matta, entre aqueles que são menos habituais no mundo eléctrico e musical d’Os Possessos.

São muitos, dividem-se entre crianças e adultos, as crianças discutem com “grande propriedade de discurso e linguagem” morte e religião, os adultos pensam em marisco e enchem a boca com futilidades. Uma das turistas tem fome porque não consegue dormir, a outra tem medo de ser estrangulada durante o sono e acha acordar uma coisa horrível. “O Novo Mundo não promete grande coisa, mas há sonhos, etc.”, dizem. Pode até seguir-se o abismo, mas, como cantam em cena, ainda agora começaram a usar as reservas de futuro. Hão-de ser suficientes para travar a tempo ou saltar e aterrar do outro lado.

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