Compra da Generg por chineses chumba no regulador
Decisão preliminar da ERSE defende que a compra da empresa de energias renováveis Generg pelo grupo estatal chinês Datang “não é conforme” a lei que obriga a separar os negócios de transporte e de produção de energia, porque a REN também tem a China como accionista. Negócio levanta questões semelhantes às da OPA da CTG sobre a EDP.
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) já avisou a empresa estatal chinesa Datang de que a compra da Generg colocará a REN, que é detida em 25% por outra empresa pública chinesa, a State Grid, em situação de incumprimento das regras europeias.
Os advogados da China Datang Overseas Co (CDOC), grupo com investimentos na produção eléctrica, que quer comprar a Novenergia, dona da Generg, pediram em Janeiro à ERSE que se pronunciasse sobre a operação, nomeadamente sobre a independência entre a CDOC e a State Grid Corporation of China (SGCC) que, através da State Grid International Development (SGID), tem 25% da REN SGPS, a dona das operadoras da rede de transporte energético em Portugal.
Sem que a independência entre as actividades de rede e de produção de energia esteja assegurada, a REN não pode manter a certificação como operador de rede, nem receber essa designação por parte do Estado português, à luz das directivas europeias que estabelecem regras para o mercado interno de electricidade e de gás.
De acordo com o projecto de decisão da ERSE, a que o PÚBLICO teve acesso, a entidade reguladora considera mesmo que estes dois grupos detidos por um accionista único, a República Popular da China, não são independentes entre si e que, a concretizar-se, a aquisição da Generg, empresa que explora parque eólicos e centrais mini-hídricas, criaria uma “situação de potencial conflito de interesses” entre a State Grid e a Datang.
Por isso, o regulador defende que “a consumação” do negócio “não é conforme” com as obrigações legais de separação jurídica e patrimonial entre as actividades de transporte (State Grid/REN) e de produção de electricidade (Datang/Generg), introduzidas para evitar distorções do funcionamento do mercado, com prejuízo para os consumidores e para a segurança do abastecimento. O negócio levanta questões semelhantes às que se poderão colocar se a empresa estatal China Three Gorges (CTG) concretizar a oferta pública de aquisição (OPA) em curso sobre a EDP.
No seu projecto de decisão (que está em período de audiência de interessados), a ERSE sublinha que o contrato celebrado entre a Datang e a Novenergia (que tem como principais investidores a Fundação Oriente e a Fundação Gulbenkian) está sujeito a uma cláusula suspensiva. A transacção só avança se a reguladora emitir um parecer prévio a considerar que a aquisição é “compatível com os actuais termos de certificação” da REN, “e ainda com as obrigações de separação jurídica e patrimonial” entre transporte, produção e comercialização. Algo que a decisão preliminar da ERSE demonstra que não acontecerá.
Tendo em conta que a transacção fica condicionada ao impacto que a operação “possa ter na actividade de um grupo empresarial terceiro (SGID)” com o qual a Datang “pretende demonstrar existir uma relação de verdadeira independência”, só por si essa condição suspensiva é “indiciadora de falta de independência funcional”, destaca a ERSE.
A Datang argumenta que a CDTO e a SGID são empresas com objectivos económicos distintos, têm estruturas financeiras, de gestão e supervisão autónomas, e que lhes é impossível coordenarem comportamentos de mercado porque não partilham os mesmos órgãos sociais. Porém, a ERSE considera que não há evidências da independência entre estes organismos públicos, nem de que não estão sob influência de uma mesma entidade, já que “ambas são detidas pelo mesmo accionista último” e estão sujeitas à supervisão da SASAC, a comissão de supervisão das empresas públicas chinesas.
Nem o facto de terem estruturas contabilísticas e financeiras separadas e objectivos económicos distintos são questões “determinantes” para atestar a independência entre si, nem o facto de os seus órgãos sociais (e das respectivas casas-mãe) serem diferentes afastam um hipotético cenário de concertação. É preciso levar a análise a um nível acima, diz o regulador da energia, referindo-se à “intervenção da SASAC ou do seu proprietário último”.
Notando que a SASAC “assume uma responsabilidade de investidor em nome do Conselho de Estado” (o órgão que exerce os direitos de propriedade das empresas públicas em nome do Estado chinês), a ERSE conclui que esta entidade está sujeita às orientações do Governo e tem capacidade para designar e demitir os órgãos das duas empresas.
Pelo facto de estas poderem, por sua vez, nomear os órgãos sociais das suas subsidiárias e tomar decisões estratégicas, a ERSE conclui que “a SASAC poderá, por via indirecta, controlar a CDTO e a Novenergia e ainda a SGCC e a SGID, o que potencia a concertação”. “Face aos elementos disponíveis” para a análise, a ERSE projecta pronunciar-se (numa decisão final) “pelo não reconhecimento de uma situação de independência entre as empresas CDTO e SGID”, frisa o regulador.
Ao mesmo tempo, apesar de a Datang argumentar que a REN está sujeita a um quadro legal e sancionatório que torna impossível a gestão discriminatória da rede (a capacidade, por exemplo, de condicionar a capacidade de outros produtores de escoarem a sua energia para o mercado ou de limitar as importações de energia), e de ser “muito parca” a influência que a State Grid poderia exercer sobre o operador de rede (porque está na administração da REN SGPS e não directamente na administração da REN – Rede Eléctrica), a ERSE salienta que isso não elimina eventuais conflitos de interesse.
Para reforçar este argumento, o regulador remete para a decisão de 2014 da Comissão Europeia, quando, no processo de certificação da REN, recomendou que, para que a lei fosse cumprida, a EDP, detida à época em 21,35% pelo Estado chinês, teria de deixar de exercer os votos correspondentes a 5% do capital da REN SGPS, mantendo apenas direito aos dividendos.