Médicos de fora da UE não estão a ser reconhecidos em Portugal
Processos de reconhecimento de habilitações estão parados há meses. Só luso-venezuelanos serão 120 os que já tentaram exercer, sem sucesso. Ordem dos Médicos diz que especialistas estrangeiros podiam colmatar carências no SNS.
O luso-venezuelano Victor Dias da Costa divide a vida em vários números: tem 45 anos, é médico há 20, especialista em ginecologia e obstetrícia há 15. Está há quase três anos à espera de poder exercer enquanto especialista em Portugal. Para isso tem que ver reconhecida a totalidade das suas competências académicas e profissionais: o mestrado e o doutoramento que tirou na Universidade Central da Venezuela, em Caracas, e as quase duas décadas de trabalho na principal maternidade venezuelana.
Victor não é caso único. A Associação de Médicos Luso-venezuelanos (Asomeluve) estima que dos seus 250 membros, cerca de 120 tenham tentado emigrar para Portugal depois da crise socioeconómica e política os ter levado a sair da Venezuela. Neste momento apenas 25 continuarão a tentar. "Muitos mais viriam se o seu país de origem os reconhecesse, sem deixar a sua vida em suspenso durante tanto tempo", diz Fátima de Oliveira, porta-voz da associação em Portugal.
Fátima fala de médicos formados em universidades venezuelanas com "15, 20, 30 anos de experiência" que, chegados a Portugal, se deparam com "dois a três anos" de espera até verem reconhecidas as suas habilitações e credenciais médicas.
A situação é semelhante para todos os médicos formados fora da União Europeia (UE) – devido a uma revisão das regras que está a ser levada a cabo pelo Conselho das Escolas Médicas Portuguesas, este ano as faculdades de Medicina não abriram candidaturas para reconhecer habilitações.
Noutros anos esta dificuldade não se colocou e o número de médicos estrangeiros tem-se mantido estável: representavam, no ano passado, 6,4% dos clínicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Mas o impasse, diz a associação, não se esgota nas faculdades. "Os que conseguiram chegar à Ordem dos Médicos são reconhecidos como generalistas, mas custa muito depois terem autonomia para exercer como especialistas", descreve Fátima. Também ela, cirurgiã há 28 anos, não fez qualquer progresso desde que se mudou para o Porto, em Agosto.
Para conseguirem exercer em Portugal, os médicos de fora da UE têm que ver o seu curso reconhecido por uma universidade nacional que o ministre (para os que estudaram em países da UE a equivalência é directa). Fazem um exame de línguas, uma prova de conhecimentos e outra de prática clínica. Só depois se podem inscrever na Ordem dos Médicos.
Atraso excepcional
O que se passa este ano é que as faculdades de Medicina não aceitam candidaturas para reconhecimento, enquanto o Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (que integra representantes das faculdades) não terminar a revisão do regulamento que rege este tipo de pedidos. Esta revisão, iniciada no ano passado para que as regras sejam iguais em todas as escolas, deverá estar terminada em Julho, antecipa a coordenadora do conselho, Maria Amélia Ferreira. Conta que até ao final do ano seja possível abrir as candidaturas. Em situações normais estas abririam em Março ou Abril e os médicos teriam o grau de mestre reconhecido até Outubro.
Maria Amélia Ferreira sublinha que este atraso é excepcional. "Nestes processos, Portugal tem sido um país muito inclusivo e tem muito respeito pelas pretensões dos colegas. A revisão agora em curso virá em benefício deles, porque tornará o processo mais justo, uniforme entre todas as escolas”, refere.
Medicina e Medicina Dentária são os únicos cursos em que, devido à prestação provas, existe um período fixo para a apresentação destes pedidos. Esta excepção deve-se à "especial complexidade da prática profissional destas áreas, mas também por em muitos sistemas de ensino estrangeiros (como é o caso do venezuelano) ser possível a graduação com o grau de licenciado (3-4 anos de curso) quando em Portugal e na União Europeia a graduação mínima destas áreas é de mestre (5-6 anos de curso), o que dificulta a atribuição da equivalência", como explica a Universidade do Porto. Nesta instituição o tempo médio de resposta é de 15 meses.
Regime de excepção
Victor chegou antes desta revisão. Depois de várias visitas aos avós, em Portugal, e à restante família, em Espanha, tomou a decisão de emigrar há três anos. Pouco depois, em Julho de 2016, a maternidade onde trabalhava, Concepción Palacios, era notícia no El País. "Os profissionais da saúde permitiram que os jornalistas entrassem no hospital para lhes mostrar as condições de trabalho: equipamentos em mau estado, casas de banho sem água nem luz, escassez de alimentos, instalações deterioradas, falta de meios para tratamento", descrevia o diário espanhol. Os médicos apontavam este colapso do sistema de saúde como a causa para a morte de 166 recém-nascidos nos primeiros sete meses desse ano, só naquele hospital em Caracas.
Hoje tem a formação reconhecida pela Universidade Complutense de Madrid e pela de Coimbra, e está inscrito na Ordem como generalista – um processo administrativo que, diz o bastonário Miguel Guimarães, é concluído num máximo de três semanas. "Agora o reconhecimento da especialidade é muito complicado, a burocracia é terrível e tudo leva muito tempo", lamenta o médico luso-venezuelano. O currículo é submetido ao crivo do colégio da especialidade, que lhe pode dar equivalência directa ou submeter o médico a um teste de conhecimentos. Em última análise, pode-lhe ser exigido que faça mais formação.
O tempo pode ter um custo elevado para Victor, que diz "ter cada vez mais dificuldade" em receber dos serviços venezuelanos os documentos que lhe são pedidos cá. E não deixa de comparar os países ibéricos. Em Espanha viu o processo arrumado em três meses. Sabe que actualmente seria mais lento, podendo chegar aos nove. Mas Portugal já lhe leva mais de dois anos.
Adayza Figueredo também começou a olhar para os números. Há 28 anos que é médica especialista em doenças infecciosas e docente no Hospital Universitário de Caracas, onde foi directora da comissão de infecções hospitalares. Está em Lisboa há cinco meses, “parada”, sem “profissionalmente ter conseguido sair do sítio”. Como Fátima e Victor, quer exercer em Portugal, mas não enquanto generalista. "Não se pode pedir a um médico com formação especializada, com pós-graduações e doutoramento, que actue como clínico geral. Em nenhum país do mundo isso existe", aponta.
Face à demora na abertura dos procedimentos nas universidades, a burocracia “excessiva” a que dizem ser sujeitos e perante o reconhecimento internacional da crise na Venezuela, estes médicos pedem que seja criado um regime de excepção que lhes permita uma homologação mais rápida. "O resto do mundo está a ajudar os médicos que foram forçados a sair do seu país. Estamos na América Latina, no Reino Unido, em França, na Alemanha, e, principalmente, em Espanha. Não percebemos como é que, perante uma situação que é do conhecimento público, não recebemos algum tipo de excepção no nosso país de origem. Apenas queremos que nos dêem a oportunidade de procurar trabalho”, expõe Fátima de Oliveira.
A Federación Médica Venezolana (equivalente à Ordem dos Médicos) estima que cerca de 22 mil médicos tenham saído do país nos últimos anos.
Maria Amélia Ferreira reconhece que os maiores entraves surgem com questões de documentação. Repara que o Conselho das Escolas Médicas se depara com “situações dramáticas” de, por exemplo, médicos refugiados que não conseguem aceder aos seus documentos. “Mas não podemos aceitar o que não está validado. Não podemos aceitar quando não há reciprocidade entre as universidades [o que acontece, por exemplo, com as faculdades privadas de medicina]. O processo tem que ser rigoroso”, sublinha.
Colmatar falta de especialistas
Um dos argumentos da Asomeluve é o facto de o Estado português ter aqui a oportunidade de contratar médicos, cuja formação não teve que pagar. Outro é a possibilidade de virem colmatar a falta de especialistas no SNS – a Ordem dos Médicos estimou, no ano passado, que faltassem entre quatro a cinco mil clínicos para cumprir o rácio aconselhado internacionalmente. E o bastonário reconhece que a vontade expressa por estes profissionais pode ser uma oportunidade para colmatar as carências, em especial, nas ilhas.
“Não entendemos como, nesta circunstância de carência, particularmente em certas regiões de Portugal continental e insular, os processos de equivalências e homologações académicas não sejam mais expeditos, menos complexos e menos emaranhados”, diz Adérito de Sousa, presidente da Asomeluve.
O cirurgião, especialista em otorrinolaringologia, dá também o seu exemplo: fez formação na Venezuela, onde vive, e nos EUA. "Não tive que fazer tanta volta para entrar nos EUA nem para conseguir exercer na Austrália. Por isso sei por experiência própria o quão insólitos são os entraves burocráticos que Portugal coloca", afirma.
A associação teve uma audiência há cerca de três semanas com deputado José de Matos Rosa, presidente da comissão de Saúde, onde estiveram representantes dos grupos parlamentares do PS e PSD. O social-democrata questionou depois a Ordem dos Médicos, assim como os ministérios da Ciência e Ensino Superior e da Saúde, com conhecimento dos Negócios Estrangeiros, esperando que a comissão possa debater a questão assim que esteja reunida toda a informação. Fátima e Adayza esperam ainda estar em Portugal quando isso acontecer.