Han Solo: o público ama-o, e ele sabe
O que é que Han Solo tem? E como se substitui Harrison Ford na imaginação de milhões? Han Solo: Uma História de Star Wars é um teste a uma personagem que é um pedaço de história do cinema popular.
Han Solo é o herói acidental do Star Wars original e o herói inevitável do primeiro filme independente da saga que é centrado numa personagem. Neste que é um dos negócios mais rentáveis do mundo e nestes que são dos filmes mais vistos do planeta, estreia-se Han Solo: Uma História de Star Wars. O que é que Han Solo tem? Tem um pouco de Francis Ford Coppola, de pirata e de cínico, e muito de Harrison Ford, o actor que lhe deu o rosto e a fala que o resume. A princesa, como o público faria mais tarde, disse-lhe: “Amo-te.” E ele respondeu-lhe: “Eu sei.”
Solo sempre foi Harrison Ford, um dos actores mais reconhecíveis das últimas décadas, e agora será outro, o jovem Alden Ehrenreich, a alteridade a desafiar um novo público e o velho público. Solo em Ford aproximava o público do conto de fadas espacial, mas Han Solo também foi um pedaço da história do cinema dos anos 1970, inscrita numa personagem que começou por ser um monstro verde nos primeiros esboços de Star Wars: A New Hope (1977), e depois passou a “rapaz barbudo e musculoso mas rudemente bem-parecido vestido com uma fatiota espalhafatosa”. Ou, como atenta Chris Taylor no livro How Star Wars Conquered the Universe, “basicamente [era Francis Ford] Coppola”. A geração dos movie brats que criaram uma Nova Hollywood, um cinema autoral rebelde nos anos 1970 e depois um novo paradigma de cinema popular, os blockbusters, eternizava-se num dos seus filmes mais vistos.
O historiador de Hollywood Peter Biskind recorda em Easy Riders, Raging Bulls: “Lucas introduziu Coppola no seu guião como Han Solo, numa versão autolisonjeadora da relação entre os dois. Solo era mais esperto e contornava o Império (leia-se os estúdios) e gostava de patinar à beira do precipício, mas tanto jogava em grande quanto perdia em grande, nunca acumulando dinheiro suficiente para ter um verdadeiro poder, e tinha um amplo lado autodestrutivo.” O herói loiro de coração puro, Luke Skywalker, era George Lucas.
Quanto mais a personagem que vai encher os cinemas nos próximos dias evoluía, mais era como um pirata. “É cada vez mais como Coppola, um vendedor subtil que consegue safar-se de tudo com conversa, um contraponto ao Luke de Lucas”, escreve Taylor no livro de 2015. Estava-se em 1975 e Coppola já desistira de convencer Lucas a largar o que seria a obra da sua vida, a primeira linha do seu futuro epitáfio, para ir realizar Apocalypse Now (1979), que o realizador de O Padrinho só queria produzir e não dirigir. Lucas resistiu, como já tinha resistido às tentativas de John Milius de o pôr atrás da câmara do filme sobre o Vietname, e o resto seria história.
“Superestrela épica”
Em 2003, o American Film Institute escolheu Han Solo como a 14.ª personagem na sua lista de melhores heróis e vilões dos últimos cem anos, numa lista encimada por Atticus Finch, de Não Matem a Cotovia, Indiana Jones e James Bond. Em 2017, a Rolling Stone considerou-o a melhor personagem de Star Wars. “É o activo mais vital da trilogia original. A masculinidade clássica de Harrison Ford e o seu sorriso desigual, usados com o estilo casual de um homem supremamente à vontade na galáxia, tornou-o o ídolo de primeira e o sangue da santíssima trindade do franchise. Solo é o herói do western, o detective do film noir e o rebelde das motas num só. É uma grande manta de retalhos de todos os filmes que Lucas amou, agregados para um novo público”, justificou Russ Fischer. “Como Han Solo, Harrison era um electrão livre, fora de órbita”, descreve George Lucas no livro Harrison Ford, de Laurence Caracalla.
Lucas não queria Ford para o papel. Já tinha filmado com ele em American Graffiti (1973) e desfiou um rol de nomes para tentar preencher o papel — Kurt Russell, Robert Englund, Nick Nolte ou Burt Reynolds foram candidatos. Al Pacino ou Jack Nicholson também, tal como Sylvester Stallone, Christopher Walken, Bill Murray, Miguel Ferrer ou Steve Martin.
Mas o consultor de casting Fred Roos achava que Ford era o actor certo e, segundo The Making of Star Wars, de J.W. Rinzler, colocou-o casualmente a arranjar uma porta no estúdio de Coppola e Lucas. Começou a ler falas com Mark Hamill e Carrie Fisher e o papel tornou-se seu. Fisher, a princesa Leia e futura amante de Ford nas filmagens, descreve no seu livro Os Diários da Princesa (2016) a imagem indelével do actor “no cenário que iria apresentá-lo ao mundo como Han Solo, a personagem mais famosa de todas as personagens famosas que iria interpretar”. Para ela, ele pertencia à categoria “superestrela épica”.
Agora, o desafio de Alden Ehrenreich não será apenas carregar um filme sobre a juventude de uma personagem com 40 anos de cinema, livros e jogos, nem protagonizar um filme turbulento que começou com Chris Miller e Phil Lord como realizadores e terminou nas mãos de Ron Howard. Será o de substituir Harrison Ford na imaginação de milhões. “É um desafio imenso”, diz ao PÚBLICO Dan Zehr, professor de literatura e anfitrião do podcast Coffee with Kenobi. “Ford traz um charme modesto a Han Solo e Indiana Jones que todos parecem adorar.”
Charme, mas também um sobrolho levantado. “O motivo pelo qual Han Solo resulta tão bem é porque é interpretado por um actor que acha que tudo aquilo é estúpido”, defendia há meses Mike Ryan no site Uproxx. É o cínico de que o espectador precisa, o olhar desconfiado num mundo de fantasia e misticismo que está mais interessado em manter-se vivo do que em lutar uma luta invisível. Solo habita o espaço gasto e usado de Lucas como um nativo sem tempo para histórias, e torna-se uma espécie de avatar do público.
“Ele é moralmente ambíguo, mas tem uma bússola moral definida. É engraçado, é espontâneo... Quando eu era miúdo, na rua as discussões eram sobre quem é que ia fazer de Han Solo. É uma das melhores personagens alguma vez criadas”, dizia Chris Miller ao site IGN, quando ainda era co-realizador de Han Solo: Uma História de Star Wars. Dias depois da estreia de Star Wars: A New Hope, na Primavera de 1977, Harrison Ford chegava a casa do realizador Jeremy Kagan “totalmente em desalinho, com a camisa semi-rasgada, parecia o William Holden no [filme] Piquenique”, escreve Peter Biskind. “Fui à Tower Recors comprar um disco e umas pessoas atacaram-me”, explicava Ford.
A personagem está de tal forma colada ao actor que sempre a encarnou que a sua mais famosa fala — quando responde, em O Império Contra-Ataca (1980), ao “I love you” de Leia com um seguro “I know”, em vez do previsível “I love you too” — é de Harrison Ford. A história era de Lucas, a realização de Irvin Kershner e o guião de Lawrence Kasdan. Todos aprovaram o improviso do actor.
Hoje, o novo realizador de Han Solo: Uma História de Star Wars foi chamado pela Lucasfilm depois das “divergências criativas” que levaram à saída de Miller e Lord. “Foi sempre claro desde o início, antes de eu estar envolvido, que não ia ser uma imitação do Harrison”, disse Ron Howard à revista Empire. “Ninguém queria isso. Parte da personagem de Han Solo é uma vibração, um sentimento e uma linguagem corporal.”
Por isto tudo, da idolatria dos miúdos à aura que Solo mantém para os adultos, era inevitável que fosse Solo o centro deste filme Star Wars? “Talvez, porque já sabemos a história de Luke e Leia. E Han é uma das personagens originais e sacrossantas da trilogia original. Como Lawrence Kasdan é um dos argumentistas [do novo filme] e como ele escreveu alguns dos momentos mais memoráveis de Han no cinema, esta é a altura perfeita para esta história”, defende Dan Zehr, também colaborador do site oficial StarWars.com.
O novo filme conta com dois Kasdan: o argumentista de O Império Contra-Ataca, O Regresso de Jedi (1983) ou Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida (1981) volta à personagem com a ajuda do filho, Jonathan Kasdan. À Empire, Lawrence explica que regressa atraído pela “ideia de como é que este tipo se tornou a pessoa cínica por fora, terna por dentro, que vemos em A New Hope. O que cria essa capa exterior de cinismo e o que cria esse âmago?”. Dan Zehr defende que “o apelo de Han Solo é não ser perfeito. Paradoxalmente, emana a capacidade de atrair e repelir no mesmo fôlego. É fascinante. A sua imprevisibilidade é tranquilizadora. Mas, no fim de contas, é ferozmente leal. É difícil não adorar isso”.
Harrison Ford fala: “A minha personagem era tanto útil para fazer a história avançar quanto era útil para o público, ao fornecer uma referência mais contemporânea: ele era o cínico”, disse o actor à Rolling Stone em 2015. Porque Star Wars “não era ficção científica. É um conto de fadas. Era como um conto de fadas dos irmãos Grimm”. Nos últimos 40 anos de cinema de massas feito de super-heróis, feiticeiros e sabres luminosos, Han Solo é uma personagem no seu próprio tempo, quando o público do cinema parece nunca ter saído da Terra do Nunca.