“O bairro deposita muita esperança neste caso para que seja feita justiça”

Amnistia Internacional e Comité Anti-Tortura vão seguir o julgamento dos 17 polícias de Alfragide que começa na terça-feira. Caso é inédito em Portugal mas também na Europa, segundo órgão do Conselho da Europa. PSP trocou chefe do comando da Amadora que tem a missão de "serenar situação".

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A Esquadra de Investigação Criminal de Alfragide tem a porta fechada e um papel com aviso a dizer que não fazem atendimento ao público. Com uma zona exterior de jardim, esta moradia podia ser uma habitação familiar. Na fachada está um azulejo com um ditado inscrito a receber quem chega: “Deus te dê em dobro o que a mim desejares.”

Esta terça-feira, dia 22 de Maio, vai começar o julgamento de 17 agentes desta esquadra acusados de, a 5 de Fevereiro de 2015, terem cometido os crimes de tortura e sequestro, entre outros crimes agravados por ódio racial, contra seis jovens da Cova da Moura.

O despacho de acusação do Ministério Público, de 10 de Julho de 2017, refere que, depois de recolhidas e analisadas as provas — exames médicos, relatos de testemunhas, inspecções, entre outras — concluiu-se “de forma inequívoca e sem sombra de dúvida” que a polícia falsificou o seu relato nos autos sobre o que se teria passado naquele dia.

É um momento inédito na justiça portuguesa: nunca se tinham sentado no banco dos réus tantos agentes acusados de tais crimes. Organizações como a Amnistia Internacional e o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa vão seguir o julgamento. E é um julgamento inédito também na Europa, segundo o Comité, que não tem registo de algo desta dimensão nos quase 50 países que monitoriza. Por isso vai querer saber o desfecho, diz ao PÚBLICO Julia Kozma, responsável pela delegação que colocou Portugal no topo dos países da Europa ocidental com mais casos de violência policial.  

Já nenhum dos 18 polícias acusados está nesta esquadra — entretanto, uma das agentes foi despronunciada pelo tribunal de Sintra. Foram distribuídos pelo Comando Metropolitano de Lisboa, por Coimbra, Braga, Porto e Bragança. Estão todos no activo, nenhum foi suspenso. Quando em Setembro o subintendente Jorge Resende foi assumir o cargo de comandante da Divisão da Amadora, ficando responsável por todas as esquadras daquela cidade, os agentes comunicaram-lhe que queriam ser destacados para outros locais — e assim aconteceu, conta ao PÚBLICO o comandante.

Calma e expectativa

A poucos minutos a pé da esquadra, no bairro da Cova da Moura, onde tudo se passou, o desenrolar e desfecho do julgamento é aguardado com expectativa. As ruas estão tranquilas, com mulheres a vender fruta, cafés e restaurantes de portas abertas, poucas crianças na rua porque é de manhã e estão na escola.

Eliseu Cardoso está a arranjar a porta de um carro na oficina onde é mecânico. Mostra-se céptico porque os agentes acusados já não estão na esquadra. Aquilo que o subintendente Resende diz ter sido uma atitude que louva da parte dos polícias — pedirem para sair — Eliseu Cardoso interpreta como uma tentativa de a instituição “diluir o caso”. Tem dúvidas sobre se os agentes vão aparecer em tribunal. “Vamos ver para crer.”

Ele próprio tem uma queixa contra a polícia daquela esquadra por uma agressão de que diz ter sido alvo em 2013 quando levou com um cassetete na cabeça — ainda não tem desfecho. Mas quer ir ao Tribunal de Sintra “para ver se os arguidos estão lá”. “Será que vão fardados ou à civil?”, questiona-se, sorrindo. “O facto de haver julgamento é bom. Senão ficamos com a ideia de que eles são intocáveis. Vamos dar tempo ao tempo para ver se a justiça funciona”, afirma.

Há um antes e depois do despacho de Julho, dizem moradores. Rosário Mendes, há 20 anos a trabalhar na Associação Moinho da Juventude, refere que “a situação do bairro mudou completamente” desde a acusação. “Há menos policiamento e quando os polícias passam não põem os miúdos todos encostados à parede, para humilhar, como faziam. Muitas vezes vinha com as crianças na rua e tinha que dar grandes voltas para eles não se aperceberem”, conta a agente de educação familiar no Centro de Actividades de Tempos Livres. “Chegou a hora da justiça e da polícia fazerem uma retrospectiva sobre a forma como actuam nestes bairros. É altura de cada um assumir as suas responsabilidades. Que a justiça tome uma posição sem precedentes. A polícia também faz falta para nos proteger”, sublinha.

Na biblioteca do Moinho da Juventude, uma instituição distinguida com o prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República e que vai dar apoio aos ofendidos, Jakilson Pereira, membro da direcção, conta que “o bairro deposita muita esperança neste caso para que seja feita justiça”: “Havia uma violência desproporcional e ninguém estava isento.”

No dia em que se soube da acusação, Jakilson Pereira postou no Facebook fotos de carrinhas da polícia que “invadiram” o bairro “para intimidar”. Mas desde então que o clima tem estado mais tranquilo, isto depois de um período em que os agentes tinham “poderes militares”, instalando um “clima de terror” e provocando nos habitantes “medo de ir à esquadra”, relata. “Muitas vezes a própria postura e a forma de falar dos polícias [do corpo de intervenção rápida] traziam desordem em vez de ordem. A agressão na via pública era uma forma de passar a mensagem às pessoas. Mas os agentes da polícia de proximidade continuam a vir cá, nunca houve problemas com esses.”

Faz questão de sublinhar que os moradores acreditam que o bairro deve estar sujeito, como os outros, “aos mesmos deveres e direitos”. “A Cova da Moura faz parte da soberania portuguesa. Nunca dissemos que não queríamos que a polícia entrasse no bairro. Ninguém na Cova da Moura acredita na excepcionalidade. Aliás, lutamos contra essa excepcionalidade.”

Imagem da polícia

Se há uma mudança, ela não aconteceu apenas no bairro. A troca do superintendente Jorge Resende do comando de Loures para o da Amadora, substituindo Luís Pebre em Setembro, fez-se com a missão de seguir a linha orientadora da PSP mas “não escamoteando o que se tinha passado”, refere Resende.

Sem querer falar do caso concreto, conta que o objectivo “era serenar a situação a nível do serviço policial, estabelecer ligação com o MP na resolução dos casos e manter um policiamento de proximidade e de combate ao crime”. Não que reconheça que fosse preciso mudar alguma coisa: o que reconhece é que “a imagem da actuação policial estava a ser posta em causa”.

O resto, “só as instâncias judiciais vão decidir o que aconteceu”, refere.

Da parte da direcção nacional da PSP, a declaração é curta: diz que acompanha o processo mas não se vai pronunciar sobre ele. O gabinete de comunicação recordou que, como disse o director nacional na altura, qualquer situação que “ponha em causa o que deverá ser o normal funcionamento da polícia é um factor de preocupação”.

Já o Sindicato Unificado da Polícia, que representa 16 dos 17 arguidos, tem confiança que os agentes serão absolvidos. Está convencido da sua inocência. “Há inúmeras contradições detectadas e a expectativa é provar que a nossa polícia não actuou de forma racista. Toda a gente sabe que a Amadora é dos locais mais complexos para se trabalhar a nível nacional”, diz Peixoto Rodrigues, presidente do sindicato.

Advogado de 16 polícias, Gonçalo Ferreira Gaspar diz que vai centrar a sua estratégia na “impugnação dos factos por não corresponderem à verdade”. Antigo adjunto no Ministério da Administração Interna durante o anterior Governo PSD, afirma: “O nosso ponto forte vai ser explicar, testemunhalmente, em termos periciais o que aconteceu na altura.”

Do lado da defesa dos jovens, a advogada Lúcia Gomes refere que o objectivo “é que se provem de forma inequívoca os actos bárbaros a que [os jovens] foram sujeitos e tentar que eles sejam justamente compensados”. A expectativa é de que “seja uma sentença que demonstre à sociedade que estas coisas não podem acontecer”.

Como testemunha, arrolaram um polícia que terá estado no dia 5 de Fevereiro na esquadra de Alfragide. “Temos confiança que a nossa versão é sólida, comprovada pelo Ministério Público e pelo relatório da Inspecção-Geral da Administração Interna. É a primeira vez que os polícias se vão pronunciar depois do primeiro interrogatório. Será a primeira vez que teremos oportunidade de os confrontar com as suas motivações e acções.” 

Independentemente do desfecho, marcado para Setembro, uma coisa é certa: há um antes e um depois do despacho de 10 de Julho de 2017, na Cova da Moura e na PSP.  

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