A Eurovisão como jogo político, em directo e na TV

Para lá das canções, o Festival Eurovisão da Canção é um teste às relações entre os países que participam no concurso. Será a música mais forte do que a política?

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Actuação da banda Stephane & 3G Stuart Wilson/Getty Images

No ano passado em Kiev, Ucrânia, Salvador Sobral recebeu um “puxão de orelhas” da organização do festival da Eurovisão. Nos bastidores, o músico tinha vestida uma camisola preta com a mensagem “SOS Refugees” (SOS Refugiados), algo que para a União Europeia de Radiodifusão (EBU) é visto como uma mensagem política, uma atitude banida pelo regulamento do concurso. Salvador defendeu-se dizendo que aquela camisola tinha uma “mensagem humanitária”, mas a organização não se mostrou permissiva, numa edição que tinha como assinatura “Celebrate Diversity” (Celebrar a diversidade).

Numa Europa de várias sensibilidades, a única forma de chegar a todos sem gerar problemas é garantindo (ou pelo menos tentando) que o concurso fica à parte das mensagens políticas e comerciais, seja nas canções ou fora delas. Mas fugir ao regulamento pode dar a um artista ou a um país a capacidade de passar uma mensagem para um universo de mais de 200 milhões de espectadores. A história do concurso mostra que houve vários participantes a afrontar as regras, com mais ou menos sucesso.

Rita Pereira, com 23 anos, é aluna de mestrado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e está a preparar uma tese de mestrado sobre o facto de o regulamento da Eurovisão dizer que este é um “concurso apolítico”. Rita acompanha o festival desde a edição de 2005, também na Ucrânia: “Encanta-me a combinação da música com a multiculturalidade.” Não se considera uma enciclopédia do festival, mas diz de cor intérpretes e anos em escassos instantes. “A Eurovisão é relativamente pouco estudada”, desabafa, por isso o tema da tese acabou por ser uma “escolha natural”.

A primeira questão que põe em cima da mesa equivale à abertura de uma caixa de Pandora: “O que faz com que uma canção seja considerada política?” Rita assegura que “a política existe sempre na Eurovisão”, mesmo que “existam regulamentos que digam o contrário”. “Há um concurso com canções de vários países — uma expressão artística — e sobre o que é que as pessoas falam? Falam dos contextos sociais onde vivem. Isso também não é político?”

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Salvador Sobral com a camisola que agitou a organização do festival STR/NurPhoto via Getty Images

Portugal acaba por ser um “exemplo paradigmático” em várias canções que levou à Eurovisão com mensagens políticas, desde aquelas que tinham a intenção de ser entendidas “por cá”, como as críticas ao Estado Novo em Tourada de Fernando Tordo (1973) ou até à tentativa dos Homens da Luta de passar uma mensagem contra a austeridade a nível europeu (2011). Apesar dessas demonstrações mais politicamente activas ou conotadas, nunca existiu um problema em relação às participações portuguesas no concurso.

“Quando as canções são políticas, mas que não criam pontos de tensão entre países, a organização não diz nada”, até porque “muitas vezes o festival não percebe os significados”. Apesar disso, Rita faz questão de dizer que, para ela, “o festival não é um concurso de canções”, mas sim “um espectáculo audiovisual” e por isso a “mensagem também se pode passar “nessa vertente visual”. Exemplo disso foi quando em 2015, na Áustria, várias bandeiras LGBT foram erguidas aquando da actuação da representante russa. Este gesto levou a que no ano seguinte fosse introduzida uma “política de utilização das bandeiras” que proibia a utilização da “bandeira arco-íris” de “forma política” durante a actuação da Rússia. A organização justificava a sua decisão dizendo que estas bandeiras “não podiam ser usadas como uma ferramenta política”.

Para existir uma canção banida por razões políticas, temos de recuar a 2009. We Don’t Wanna Put In do grupo pop Stephane & 3G foi escolhido pela Geórgia para ir ao festival que se realizava em Moscovo, na Rússia. As duas palavras do título da canção faziam lembrar o nome do Presidente russo, Vladimir Putin, que combinado com “We Don’t Wanna” (nós não queremos) levou a que os intérpretes nunca chegassem a pisar o palco do Estádio Olímpico de Moscovo. A organização considerou que a canção continha uma mensagem política evidente e, para evitar um conflito com o país organizador, baniu a canção. A ex-república soviética tinha cortado as relações diplomáticas com a Rússia um ano antes, o difícil relacionamento entre as duas nações acabou por ditar o abandono da Geórgia dessa edição do festival.

“Não é possível excluir tudo o que é político”

O (ainda instável) Leste europeu tem levado à existência de situações complicadas no festival. Lisboa recebe nesta quinta-feira a actuação da cantora russa Julia Samoylova conhecida por ter sido banida do festival que se realizou na Ucrânia o ano passado. Samoylova tinha ido em 2014 à Crimeia quando esta já se encontrava anexada pela Rússia e foi por isso impedida de ir a Kiev pelas autoridades ucranianas. Em protesto pela organização não ter resolvido o diferendo, o canal estatal da Rússia recusou-se a participar na edição do ano passado.

Este ano, a canção Mercy, apresentada pela França, fala sobre refugiados. “A Eurovisão ainda não disse nada, mas isso não é político?”, questiona Rita Pereira. “Há coisas que não dá para contornar”, por isso “não é mesmo possível excluir tudo o que é político”, defende.

Questionada se é mais importante a canção do que o país que a apresenta, Rita defende que “o mais importante é mesmo a canção e a actuação” e prova esse argumento dando o exemplo da participação de Salvador Sobral em Amar pelos Dois, que, no ano passado, venceu não só na classificação dos vários painéis de jurados, mas também no televoto.

Rita sempre ouviu que Portugal “não podia ganhar a Eurovisão porque não tinha vizinhos”, mas a realidade mostrou o contrário. Certo é que nas votações há muito de político, e as históricas amizades entre nações revelam-se no televoto (e em certos casos nos próprios jurados). Por esse motivo quando a votação dos telespectadores era determinante para escolher o vencedor do festival (1997-2008), os países de Leste acabavam por conseguir reunir mais vitórias do que os países do Ocidente. Havia uma espécie de política de voto em bloco pelos Balcãs, que se acentua pela imigração de Leste na Europa ocidental. O que demonstra que na Eurovisão, às vezes, é preciso “ter uma boa vizinhança”.

O festival ou a guerra

Tiago Batista, 24 anos, é o autor da tese de mestrado “A Geopolítica e a votação no Festival Eurovisão da Canção”. Na tese que realizou no ISCTE, em 2016, Tiago analisou o impacto da introdução, em 2009, do modelo misto de votação, que dava igual poder aos painéis de jurados e ao televoto dos espectadores. Antes, o festival tinha passado por um período de controvérsia em relação aos resultados apurados por televoto. Em 2007, por causa deste sistema, nenhum país ocidental que tivesse participado na semifinal se qualificou para a final, “o que obrigou a mudar o sistema”. A Áustria boicotou o festival em 2008, “diziam que assim o que estava a valer era o nome do país e não a canção”.

Batista garante que “com o modelo misto o voto não é tão político”. Situações como a da primeira participação da Albânia, em 2004, deixaram de ter relevo. Nesse festival, à excepção de Sérvia, Eslovénia e Macedónia que deram os 12 pontos (a pontuação máxima) à Albânia “mais ninguém achou piada à música”. “Mas é engraçado como os vizinhos gostaram todos.” Um dos casos de “resistência” em relação àquilo que “ainda continua a ser um voto declaradamente político” é o caso de Chipre e da Grécia. São poucas as vezes na história da Eurovisão que o país do mediterrâneo não deu a pontuação máxima à ilha vizinha, que mantém uma disputa de décadas entre a população de ascendência grega e de ascendência turca (parte norte da ilha). “É normal votarmos em países com os quais temos afinidade”, diz Tiago Batista. Por isso “é claro que Portugal vote mais em Espanha do que noutro país qualquer com o qual não tem afinidade”.

Tiago Batista considera que “o Leste ainda politiza muito o festival”, e dá um exemplo relacionado com esta edição: “O Presidente da Bielorrússia disse esperar que o país recebesse os 12 pontos da Rússia e da Ucrânia.” “Na Europa de Leste as coisas são levadas muito a sério”, de tal forma que em 2013 o Governo do Azerbaijão teve de pedir desculpa à Rússia por não lhe ter dado pontos no festival.

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A cantora russa Julia Samoylova conhecida por ter sido banida do festival que se realizou na Ucrânia, no ano passado EPA

Caso extremo foi o do Azerbaijão em 2009, quando o Governo pediu à empresa de telecomunicações do país que lhe desse o nome de todas as pessoas que votaram na canção da Arménia. Esse fãs seriam depois investigados, já que tinham revelado uma “atitude antipatriota”.

Foram 43 os azeris chamados a justificarem-se. Há também registo de picardias entre os dois países no próprio espectáculo televisivo. Nesse ano, no momento de votação da Arménia, a porta-voz mostrou uma imagem de um monumento da região de Nagorno-Karabakh, que está em disputa com o Azerbaijão. “Os países usam o festival porque é muito mais fácil e mais barato do que fazer guerra”, diz o investigador.

A participação da Macedónia também é um problema para a Grécia, de tal forma que quando a ex-república jugoslava aparece no festival tem de vir com o nome “F.Y.R. Macedonia”. Esta situação acabou por ser levada ao extremo quando, em 2006, o festival se realizou em Atenas e o grafismo contou com o nome do país escrito de forma integral “Former Yugoslav Republic of Macedonia” (Antiga República Jugoslava da Macedónia). Este conflito tem origem no nome em disputa entre os dois territórios e que tem condicionado a participação do país na Eurovisão. Também este litígio tem levado ao atraso na integração europeia da Macedónia, por influência da Grécia.

“A RTP ia só marcar presença”

Apesar das apostas, ao contrário de uma grande competição desportiva onde o leque de possíveis vencedores é reduzido à partida aos ditos “favoritos”, na Eurovisão a inexistência de um padrão comum de vencedores leva a que não haja um vencedor antecipado (e já foram 27 os países a ganhar pelo menos uma edição do festival). “Não existe um modelo eurovisivo”, e “Salvador Sobral é a prova disso”, defende Tiago.

O investigador também tem “dúvidas” de que a RTP tivesse querido verdadeiramente ganhar o festival até ao ano passado. Antes da vitória de Salvador Sobral, “íamos só marcar presença” e por isso “não éramos levados a sério”. O autor de A Festa da Vida (1972), Carlos Mendes, chegou a dizer que o operador público o “proibiu de promover o festival a nível europeu, porque Portugal não podia albergar o festival”.

A “semana Eurovisão” está a começar agora. Não haverá cartazes políticos, porque esses são proibidos no recinto do festival. O que já não é garantido é que as mensagens políticas não possam passar de formas mais criativas ou menos explícitas. O que parece mais certo são os 12 pontos “políticos” que Chipre dará à Grécia.

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