No turismo “não há mão-de-obra, ponto”
Francisco Calheiros, reeleito para a presidência da Confederação do Turismo Português (CTP), diz que pode haver um abrandamento do crescimento do sector este ano, e que o importante é apostar mais na estadia média e no aumento do preço.
Eleito para um terceiro mandato à frente da Confederação do Turismo Português (CTP), onde ficará até 2021, Francisco Calheiros tem dúvidas sobre a operacionalidade do aeroporto complementar do Montijo em 2022. “Todos os dias perdemos a vinda de novas rotas aéreas e turistas”, destaca. Sobre questões laborais, diz que as necessidades estão muito acima da procura, um problema que “precisará de várias frentes” para ser resolvido, envolvendo as escolas, a migração e a requalificação de trabalhadores. E que o banco de horas individual é uma das “linhas vermelhas”.
O seu discurso de tomada de posse foi virado para os desafios do futuro. Quando é que o crescimento do turismo começa a abrandar?
Dizer quando é que um determinado sector vai entrar em maior ou menor crescimento ou em recessão é algo muito difícil. Sabemos que os ciclos económicos existem, pelo que é evidente que vai haver um dia - esperamos que seja o mais longínquo possível - em que surgirá uma crise. No passado foi por causa do subprime, por exemplo, o que é que vai ser no futuro não sabemos. Agora, não há dúvida nenhuma que desde há quatro anos a situação tem estado a melhorar. O ano de 2017 foi um excelente ano, no seguimento do que tinha sido 2016 e, se nada de anómalo acontecer, todos os dados indicam que 2018 vai ser outra vez um bom ano. Poderá não crescer tanto como em 2017, mas o ritmo de crescimento tem sido uma loucura.
Haverá um abrandamento já este ano?
Poderá haver. Mas não está nada garantido. Não gosto de fazer comparações antes do primeiro quadrimestre, com a inclusão da Páscoa, que é extraordinariamente importante. Agora, se o sector cresceu 7,5% no ano passado, e se este ano crescer 6%, todos ficamos contentes. Até porque temos de entrar mais num outro tipo de guerra, que é a do aumento de preço. Já temos tido aumento de preços. Até por causa do aeroporto de Lisboa, que vai ser um entrave [ao crescimento] … então, o que é que temos de fazer? Apostar mais na estadia média e no aumento do preço. Se, por exemplo, mudarmos uma estadia média de 2,4 noites para três, já é um enorme aumento.
De facto, o que se verifica que é tudo tem crescido, menos a estadia média…
Sim, tem-se mantido.
Porquê?
Veja o caso de Lisboa. Os grandes drivers têm sido os citybreaks e os congressos e incentivos. Os congressos têm uma determinada durabilidade, dois dias, eu não posso chegar ao pé da organização e pedir para o evento ter mais um dia porque me dá jeito. Quanto aos citybreaks, estão a crescer na Europa e Portugal, com destaque para Lisboa e Porto, está muito à frente nessa realidade. E é isso mesmo, um break, de dois, três dias.
Como é que se aumenta o tempo de estadia?
Há várias coisas que se podem fazer. Há uns meses, por exemplo, fui a um hotel que faz agora um espectáculo musical a um dia de semana. Se for a uma segunda-feira, a pessoa que vinha passar o fim-de-semana pode ficar mais um dia. Ou vinha na terça-feira em trabalho e antecipa a viagem para ver o espectáculo. Mas da mesma maneira que é importante subir a estadia média também temos de ir continuando a crescer no preço médio. Há zonas onde tem crescido bastante, mas vínhamos de um patamar muito baixo, por causa da crise. Os preços, que não eram altos, baixaram bastante nessa altura. E baixar é o mais fácil do mundo, subir é que é muito difícil. Esse é um trabalho que tem vindo a ser feito nos últimos dois anos. O RevPAR [rendimento por quarto] da nossa hotelaria tem vindo a crescer, e tem de continuar a crescer.
Vê com preocupação a possibilidade de sobrecarga em alguns destinos? Uma análise recente do IPDT referiu que Lisboa e Porto têm um índice de turistas Vs. residentes superior a Londres e Barcelona.
É preciso algum cuidado na forma como se olham para as contas. O cálculo tem de ser feito com o número de habitantes Vs. o número de turistas que nos visitam diariamente, e aí as contas não são iguais. Mas estamos longe de ter turistas a mais.
Referia-me a risco de sobrecarga em algumas zonas.
Existem algumas zonas, em Lisboa, onde já existe uma carga grande de turistas. Em algumas, isso não incomoda muito a população, como em Belém. Mas há outras, como o Bairro Alto e o Castelo, em que a situação é diferente. Temos poucas centralidades em Lisboa, e temos de definir novas centralidades. É isso que a Câmara está a tentar fazer, e temos tido um grande diálogo com a autarquia nesse sentido, até por causa da questão dos transportes.
Como e onde é que isso pode ser feito? É que normalmente as pessoas querem ver o que é o mais típico…
O que se está a fazer na zona de Marvila, por exemplo, é notável. E há a Expo, que é uma zona nova, aberta, com óptimos transportes.
Mas os turistas não vão deixar de visitar a zona do Castelo. Vai-se chegar a um ponto em que é preciso limitar o número de visitantes?
Não sei. Se cá estiver três dias, e tiver três centralidades, vai a essas. Mas se houver seis, se calhar não vai a metade delas. E se souber que em três há sítios onde vai estar meia hora para entrar, se calhar vai às outras três. Mas é um tema… neste momento, estamos a fazer um estudo com a PwC por causa disso. Preocupa-nos os que vemos em determinadas cidades, como Veneza, Barcelona, Amsterdão, embora estejamos longe de estar assim. Neste momento, quer em conversas em a câmara, quer com a secretaria de Estado do Turismo, estamos a criar novas centralidades e a ver o que é que mais pode ser feito, porque a questão está muito concentrada em dois ou três sítios.
Qual o objectivo do estudo encomendado à PwC?
Para já, saber exactamente onde é que estamos.
Em termos de sobrecarga?
De carga, de sobrecarga, como quiser. Saber como é que isto está. E saber o que é que se está a fazer e o que é que se pode fazer para que essas questões possam ser ultrapassadas. Como, por exemplo, dinamizar mais a deslocação de turistas para Cascais e Sintra através do comboio, com condições. Outro exemplo: em muitos países, quando vai a um sítio, já vai com tudo tratado. Se quer ir a um museu, ou a um espectáculo, já vai com os bilhetes comprados. Em Portugal há muitos sítios onde as pessoas querem ir mas não conseguem comprar um bilhete online. Estas são situações podem e devem ser regularizadas.
O que espera das alterações à lei do Alojamento Local (AL), a ser preparadas no Parlamento? Concorda com uma maior intervenção do poder local no caso de desequilíbrio entre o número de AL e de moradores permanentes, bloqueando novas autorizações?
Em primeiro lugar, o AL é algo positivo, relativamente novo, e existe em todas as cidades e países. É uma nova forma de fazer turismo. Como qualquer nova forma de turismo, tem de cumprir as regras que as actuais formas de turismo cumprem. A hotelaria paga fiscalidade, o AL tem de pagar fiscalidade. Se a hotelaria tem uma taxa turística, o AL também tem de ter. A CTP pauta-se por uma igualdade de tratamento, seja a nível de aprovações, de controlo, de fiscalidade, etc. Agora, a nossa função é trazer mais turistas para Portugal, e fazer com que tenhamos uma boa oferta, com que tudo funcione. Essa questão [do AL] tem a ver com as autarquias, com o Governo…
Tem a ver com o impacto do turismo em determinadas zonas. Falámos do impacto dos turistas, que andam nas ruas, e disse que encomendaram um estudo. Ora o AL faz parte desse impacto, com bairros a perderem pessoas que lá viviam…
Não se pode dizer que os moradores estão a ser expulsos dos bairros por causa dos turistas, é um pouco abusivo. Veja o Chiado, há vinte anos. Era uma zona completamente desertificada, ninguém queria viver lá, era inseguro. Tem ideia de que mais de 60% das casas que são hoje AL estavam abandonadas? Se tudo continuasse assim, hoje o Chiado não tinha ninguém a viver lá. O turismo descobre isto, dinamiza, requalifica, torna seguro, tem comércio… e agora o problema é o de que está a mais? Assim é difícil.
Os turistas não vão querer pernoitar num bairro onde à sua volta só têm outros turistas…
Claro que não. Querem ter a característica local, obviamente. Agora, nós temos de fazer o nosso trabalho, e os outros [Parlamento, Governo, autarquias] têm de fazer o deles.
Mas é ou não favorável às quotas para o AL em determinadas situações?
São uma alternativa. Tem de haver outras. É preciso haver um equilíbrio, um meio termo. Mas chamo a atenção para o estudo feito pela Associação de Turismo de Lisboa no ano passado, onde se diz que mais de 90% dos lisboetas [inquiridos] estão contentes com o que se passa no turismo. Isso é algo extremamente importante. Depois, os turistas que nos visitam ainda não sentem isso [excesso].
Tem-se mostrado céptico relativamente à operacionalização do aeroporto complementar do Montijo em 2022. Porquê?
Ainda está muita coisa por fechar, quer ao nível do estudo de sustentabilidade, quer ao nível das contrapartidas camarárias, mas sobretudo porque o acordo de concessão entre o Governo e a concessionária, a Vinci, está muito atrasado. Tudo o que sabemos hoje, sabíamos há um ano. E durante 2017 aconteceu pouca coisa, para não dizer quase nenhuma. Daqui a dois meses é Verão e daqui a quatro ou cinco meses úteis estamos em 2019. E em ano de eleições o que é que acontece? Nada. Independentemente do facto de o novo Governo ser ou não de continuidade, virão com certeza com caras novas, e o que vamos ouvir dizer é “temos de estudar isto”. Ora o aeroporto de Lisboa está no limite, todos os dias perdemos a vinda de novas rotas aéreas e turistas.
Há o risco de o Montijo não avançar?
Isso não. O Montijo é o mais rápido, por isso será sempre construído, mas tem que se fechar o acordo rapidamente. Ninguém vai por em causa o Montijo. Isto já está entupido. Já estamos em 2022 e deveria ser antes, em 2021. Aquilo que tivemos há uns anos, uma final da taça dos campeões europeus, não poderíamos ter agora. Um evento de pico? Esqueça. Porque implicaria "X" aviões para os quais não temos capacidade. E não podemos falar no aeroporto [de Lisboa] sem falar no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
Por causa do tempo de espera?
Está a ficar horrível e não são problemas novos. A CTP tem feito tudo o que é possível, falámos com este Governo, falámos com o anterior...
Mas é falta de inspectores ou também falta de espaço físico?
Não, não é pelo espaço. O SEF diz que faltam inspectores, o Governo diz que pôs 50 no ano passado, mais 50 este ano... mas há uma coisa que é certa, quando você chega, tem 16 boxes de atendimento e muito raramente estão cheias, por isso não estamos a falar de falta de boxes. Quando o passageiro vem da zona não Schengen, que são normalmente os maiores voos, do Brasil, Estados Unidos, etc., chega a estar duas horas à espera. Não é admissível alguém chegar de um voo de 11 horas e sujeitar-se a isto. A primeira experiência que se tem no país é péssima. Já falámos com o ministro, com a antiga e a actual direcção do SEF, em Janeiro, e agora o que vemos é que chegámos a Abril – e atenção que ainda não é época alta – e já estamos a falar em duas horas. É inadmissível. Estamos a solicitar novas reuniões, quer com o ministro da Administração Interna, quer com a direcção do SEF.
Há muitas queixas relativamente à falta de mão-de-obra qualificada. Como é que se consegue mão-de-obra qualificada, com baixos salários e a questão da sazonalidade?
Neste momento não falamos em mão-de-obra qualificada ou não qualificada: não há mão-de-obra, ponto. Deixe-me fazer umas contas simplistas… as nossas escolas de turismo trazem à volta de três ou quatro mil novos formandos todos os anos, se as outras escolas formarem mais 3500 e se você tiver três mil imigrantes -- que não faço ideia se tem -- chega a cerca de dez mil pessoas. De quanta mão-de-obra temos precisado nos últimos anos? Quarenta mil. Não tem solução. No estudo que andámos a fazer constatámos que há unidades hoteleiras no Algarve que vão todos os dias buscar e levar pessoas ao Alentejo. Isto é um problema que vai demorar tempo a solucionar e que precisará de várias frentes, como o aumento das vagas de estudo, da migração ou a requalificação de outras pessoas.
Mas como é que se resolve?
Vai resolver-se em alguns anos, não num mês. Por um lado tem que haver aumento de alunos e mais integração. Há muito talento em Portugal, não tenho dúvida nenhuma, os nossos trabalhadores brilham sempre lá fora, sejam dos mais ou menos qualificados. Temos de reconverter esse talento em Portugal para o turismo. Reconheço que a CTP tem de fazer o trabalho de criar mais awareness, mais apetência para vir para o turismo. Há uma coisa para a qual já toda a gente quer ir, que é chefe de cozinha, que passou a ser uma profissão atractiva. Mas temos de criar mais atracção para a hotelaria e a restauração. Não me canso de dizer que o turismo é muito mais do que hotelaria e restauração, o turismo é golf, resorts, companhias aéreas, agências de viagens, transportes, mas aí não temos a mesma dificuldade. É evidente que esta é uma actividade que em alguns sítios tem alguma sazonalidade, embora no ano passado dois terços do crescimento tenha sido na época baixa. Um hotel que tem uma ocupação de 95% em Agosto, no Algarve, para o ano terá 95% outra vez e já tem o quadro de pessoal preparado para isso. Mas esta é uma actividade sazonal e portanto temos de ter uma legislação laboral suficientemente flexível.
Mas será que o sector não consegue atrair as pessoas de que necessita pelos salários que pratica, que em média são baixos, e precisamente por essa elasticidade do “preciso, não preciso”?
Salários baixos? Calma. Este é um sector que tem como ponto positivo, entre outras coisas, o facto de abarcar pessoas com altíssimas qualificações, mas também pessoas com menores qualificações. Por isso tem de haver lugares para todos. Segunda questão, normalmente fala-se muito no salário mínimo, no sector paga-se X% (é um número alto) de salários mínimos, mas o problema é que em 90% da nossa actividade, seja numa companhia aérea, num aeroporto ou num hotel, trabalha-se 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano. Ninguém recebe o salário mínimo, mas quando você faz as estatísticas é isto que está em cima da mesa e qualquer subsídio que você aqui tenha de fim-de-semana, de noite, ou de turno, soma. Essa é que é a conta.
Mas o rendimento médio anual de um trabalhador no sector da hotelaria e restauração é cerca de 33% inferior ao conjunto da economia.
A base.
Não sei se é a base. É o que está escrito na estratégia do turismo até 2027, do Governo, e não diz se é base.
É base, estou a dizer-lhe. Um dos grandes desafios que todos temos, privados e públicos, é o tornar este sector mais atractivo e de captar mais pessoas.
Falou da legislação laboral e da flexibilização. Essa especificidade já está a ser tomada em conta quando, por exemplo, no programa de combate à precariedade apresentado pelo Governo a taxa de penalização terá em conta a rotatividade média do sector.
Não se pode confundir precariedade com sazonalidade. Precariedade é eu fazer um contrato de seis meses e não saber o que me acontece a seguir, na sazonalidade eu já sei ao que vou. Na precariedade a maioria das pessoas estão a fazer funções que deviam ser efectivas e acabam por estar sempre com o credo na boca.
Mas a precariedade existe em todos os sectores e o turismo não é excepção.
Óbvio, claro que existe. Mas a primeira ideia é que precariedade e sazonalidade não são a mesma coisa. A segunda ideia é que há três, quatro anos, tínhamos 17% de taxa de desemprego. Isto sim, é uma praga. Porque houve uma grande recuperação económica, porque a economia mundial começou a andar melhor e a nossa também e porque o turismo ajudou, a taxa foi descendo e estamos em 8% e continua a baixar. Num momento em que o desemprego está a baixar, vai-se abrir a caixa de Pandora da legislação laboral?
Porque é que lhe chama caixa de Pandora? A ideia, tanto quanto percebo, é ter mais qualidade no emprego.
O que acho é que a legislação laboral não é algo em que se diga que se pode mexer nisto ou naquilo. Quando mexe na legislação laboral, mexe-se nela como um todo, e vai pôr-se em causa o que existe. O Governo anterior fez algumas alterações à legislação que foram extraordinariamente importantes e o que acontece é que se vamos pôr isto em causa...
Está a pensar em quê?
Na lei das indemnizações, por exemplo. Há várias. A nível de despedimentos colectivos temos uma lei com a qual os empresários podem viver e que a nível europeu é considerada bastante razoável. A nível individual, é do mais atrasado que temos.
O que é que teme?
Considero antes de mais que é um erro. Os empresários de turismo estão a recrutar com esta legislação laboral, não é com outra. Se você diz que vai mexer, mas ainda não disse em quê, o empresário fica na expectativa e é uma barreira ao recrutamento. Querem mexer na legislação laboral? Ok, mas então esperem que pare de descer o desemprego. Há um documento que o Governo nos enviou e que estamos a estudar, mas são 28 coisas para mudar. Dou-lhe exemplos de coisas que para nós são dramáticas, como o banco de horas individual, em que não faz qualquer sentido mexer-se. E para quê? Esperem. À medida que o desemprego vai descendo, os salários também vão subindo, parece-me óbvio que é um erro estar a mexer agora.
As mudanças no banco de horas teriam um grande impacto?
Acabar com o banco de horas individual teria um impacto muito, muito forte. E mais, achamos que o banco de horas individual não só é positivo para as empresas, como para os trabalhadores, que gostam e apreciam muito o banco de horas. Se o seu filho fizer anos na sexta e trocar com o seu colega esse dia pela segunda, porque a ele é-lhe indiferente... e eu, como empresário, que tenho de ter 16 pessoas a trabalhar, desde que as tenha também me é indiferente quem são.
A probabilidade de participarem num acordo laboral em sede de concertação social é neste momento muito diminuta?
Esta é uma das nossas linhas vermelhas, claramente. E depois há outra questão, que nos parece que é da mais elementar, mas que temos de ver no papel. Dizem-nos que o turismo tem uma especificidade própria e que isso vai ser reflectido nas alterações à lei. Tudo bem, acredito e não tenho dúvidas, mas quero vê-lo.