“Não precisamos de mais leis” anticorrupção, diz Amadeu Guerra

Enquanto membro do Conselho de Prevenção da Corrupção, o director do DCIAP participa em “aulas” a políticos e quadros superiores da administração pública. Na Câmara de Setúbal, houve quem apontasse “o elefante no meio da sala”.

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Conselho de Prevenção da Corrupção fez acção pedagógica em Setúbal Daniel Rocha
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Chegada à Câmara de Setúbal Daniel Rocha
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Amadeu Guerra é procurador-geral adjunto que dirige o Departamento Central de Investigação e Acção Penal e membro do CPC Daniel Rocha
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Fim da sessão pedagógica Daniel Rocha

Na Agência Espacial Europeia, tudo está previsto ao mais ínfimo pormenor. Nada pode correr mal, sob pena de acidentes graves, e por isso o plano de prevenção de riscos é o principal instrumento de gestão da instituição. Quando há uma criança em casa, também os pais esboçam planos de prevenção informais para prevenir acidentes – tapam tomadas de electricidade, protegem com peças arredondadas as esquinas das mesas, colocam em pontos inacessíveis o que possa ser perigoso para os seus “pequenos duendes”. Todos temos planos de prevenção de riscos na nossa vida. O combate à corrupção também começa por aí. Pela prevenção, e por planos com esse fim.

“O vosso plano é o melhor instrumento de gestão que encontrei até hoje, mas a prevenção da corrupção tem de nos correr nas veias”, diz José Tavares, o secretário-geral do Conselho de Prevenção da Corrupção (e director-geral do Tribunal de Contas) perante a plateia de cerca de 50 pessoas – presidente da Câmara de Setúbal, vereadores, membros da assembleia municipal, presidentes de juntas de freguesia e dirigentes dos serviços municipais de Setúbal. Em dez anos de existência do CPC, esta é a 66.ª visita pedagógica a grandes instituições públicas. A “aula” está bem preparada e depressa se passa das generalidades ao concreto.

Para a prevenção da corrupção correr nas veias, é preciso ter bem presentes os riscos. A começar pelo risco de conflitos de interesses, a que ninguém está imune, diz o “professor”. “Não posso trabalhar na câmara de manhã, à tarde num gabinete privado e no dia seguinte voltar para a autarquia e tentar resolver os problemas da minha vida privada”, aponta. Ou ser auditor do Tribunal de Contas (TdC) e ir fazer uma auditoria a uma entidade dirigida por um familiar ou amigo. É por isso que, antes de irem para o terreno, os auditores do TdeC assinam uma declaração de inexistência de conflito de interesses naquele caso específico. “Correr nas veias é isso, é no concreto, no dia-a-dia”.  

“Todos sabemos quais são os riscos: burocracia, acesso aos documentos, constituição de sociedades de última hora, subcontratação de entidades que são sempre as habituais, ajustes directos. Nem sempre há corrupção, mas são sinais”, acrescenta depois Amadeu Guerra, o procurador-geral adjunto que dirige o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), que enquanto membro do CPC foi o outro protagonista desta sessão pedagógica. Nas autarquias, aponta para uma das áreas mais sensíveis, o urbanismo: “Muitas vezes quando se criam dificuldades e burocracias, está a facilitar-se o caminho à cunha e à corrupção. A transparência existe para prevenir esses riscos”, ilustra.

O director do Gabinete de Turismo arranca o debate levantando a questão do excesso de legislação e leva Amadeu Guerra a concordar com ele. “Em Portugal também legislamos demasiado. Não precisamos de mais leis para prevenirmos e investigarmos a corrupção. A única coisa que podia ser melhorada são os aspectos premiadores. Não vou para a delação premiada, como no Brasil, mas os aspectos premiadores podiam ser repensados”, defendeu.

Foi preciso o debate ir a meio para alguém pôr o dedo na ferida. “Há um elefante no meio da sala sempre que falamos de corrupção”, disse o assessor da presidência Paulo Anjos, referindo-se ao processo de José Sócrates, que está nas mãos de Amadeu Guerra. “Alguma vez já fizeram uma sessão pedagógica como esta na Presidência do Conselho de Ministros e na presença do primeiro-ministro?” Não, reconheceu José Tavares, mas é uma ideia: “Já fizemos em vários ministérios; não há razão nenhuma para não se fazer lá”.

Maria das Dores Meira, a presidente da câmara municipal, haveria de pegar na deixa mais tarde: “A prevenção de riscos devia ser feita no Conselho de Ministros, para terem sensibilidade para as mudanças legislativas constantes, para não fazerem leis à medida e para serem mais céleres na regulamentação”. 

Amadeu Guerra apontara a contratação pública como a área de maior risco em termos de corrupção, e assim que pôde o director de Finanças e Recursos Humanos da autarquia criticou a nova lei, dizendo que tem resultado em “problemas gravíssimos” para os municípios: “Comprar qualquer coisa torna-se muito complicado. A maior parte das empresas está tapada e tem que se procurar empresas noutros municípios”, apontou.

“Quem gere sente dificuldades, mas há sempre soluções, talvez com mais planeamento”, respondeu o director-geral do CPC, justificando as opções legais: “Temos de consultar o mercado, estimular a competitividade e a qualidade. Não pode ser sempre o mesmo”. O vereador Ricardo Oliveira ripostaria mais tarde: “Parece que a concorrência é garantia de qualidade, mas eu ponho isso em causa. Na prática, algumas das regras são convites a esquemas”. Foi Amadeu Guerra quem respondeu desta vez, lembrando que a lei em causa, tal como tantas outras, são obrigações europeias que Portugal tem de cumprir.

José Tavares estava determinado a fazer pedagogia e trazia do dicionário a definição de corrupção: “Decomposição, putrefacção, desintegração, perda de integridade. É horrível! Nos países onde a corrupção é forte nota-se o seu enorme impacto na economia, na qualidade dos serviços públicos, gera descontentamento, insegurança, instabilidade, pobreza, novo-riquismo…”, dizia.

Carlos Rabaçal, o vereador com o pelouro do Urbanismo, tinha ficado a remoer o remoque de Amadeu Guerra àquela área sensível e quis dar o exemplo. Contou que na Câmara de Setúbal, de maioria CDU, há uma check list para as obras municipais que “exige um esforço quotidiano muito grande” mas vale a pena; que vigora a regra da colegialidade nas decisões, por exemplo, da atribuição de habitações e que, no sector operacional, foi feito um parque de estacionamento com regras de acesso apertadas para evitar o desaparecimento de material e equipamentos. “O nosso plano está a ser transformado em acção todos os dias”, afirmou.

“Encontrámos uma câmara desorganizada e com problemas de corrupção, como tantas outras”, rematou Maria das Dores Meira, sublinhando que nos oito anos que leva de mandato as práticas foram alteradas e que a autarquia foi rápida a elaborar o seu plano de prevenção, que agora está a ser alterado para acomodar novas informações e riscos. Mas quis alertar para outro risco: “As perseguições e terrorismo político de que são alvo as câmaras que não são da mesma cor política dos governos”.

Em dez anos, a Câmara de Setúbal foi alvo de dez inspecções, afirmou a presidente, comunista. “Nem precisávamos de plano de prevenção da corrupção, tão apertada é a fiscalização de que somos alvo. Mas nunca tivemos nenhuma coima”, concluiu, orgulhosa.

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