Marcelo avisa contra populismos e PSD já fala em rever a Constituição
Marcelo fugiu dos temas conjunturais, como é seu hábito no 25 de Abril, e preferiu acentuar a necessidade de reforço do sistema político. Ferro admite que a reforma comece pelo Parlamento, Rio diz que é um tema para "ontem" e Costa não percebeu a que riscos de "messianismos" se referia o Presidente.
O Presidente da República utilizou o único discurso do ano perante o Parlamento para fazer dois avisos sérios: a necessidade de reforçar as Forças Armadas num momento em que sobe a temperatura bélica mundial e o imperativo de fortalecer o sistema político português numa Europa em que os “populismos, messianismos e xenofobias” vão avançando, muitas vezes sob a capa de democracias musculadas.
Os dois temas foram unidos pela evocação da centenária batalha de La Lys e dos cem anos passados sobre o fim da I Guerra Mundial. “Celebrar o 25 de Abril em Portugal em 2018 é aprender a prevenir os trilhos que conduzem a caminhos indesejáveis, ainda que muito diversos daqueles de há cem anos”, disse Marcelo Rebelo de Sousa. Partindo daqui fez três reflexões, em jeito de lições da história: uma sobre a União Europeia, outra sobre as Forças Armadas e a terceira – e mais enigmática – sobre o sistema político português.
“A Europa perdeu sempre quando se dividiu e ganhou, pouco que fosse, ao unir-se, ou pelo menos ao ensaiar convergências”, afirmou, insistindo que a construção europeia tem de avançar sem nunca se esquecer que “deve ser feita em nome dos seus cidadãos”.
Sobre as Forças Armadas, lembrou tanto o facto da derrota da Batalha de La Lys ter “acelerado o fim da I República” a que se seguiu uma ditadura, como ter sido pelas suas fileiras que se fez o 25 de Abril. “A instituição militar, por vezes erroneamente considerada por alguns como reminiscência do passado, e não como garantia do presente e aposta no futuro, mantém e reforça a sua centralidade”, afirmou o comandante supremo das Forças Armadas. E foi na actualidade dessa centralidade que deixou o recado: "Afirmá-lo é imperativo, agir em conformidade ainda mais.”
Mas foi na renovação do sistema político que Marcelo se demorou mais. Sem referir casos concretos, sejam de corrupção ou do recebimento, pelos políticos, de benesses vistas como abusivas – como a polémica das viagens que os deputados insulares recebem em duplicado -, o chefe de Estado alertou para a necessidade de “prevenção de erros ou omissões”, a par da “antecipação de desafios” e da necessária proximidade entre eleitores e eleitos.
Coube ao presidente da Assembleia da República (PAR), que falara antes, concretizar algumas ideias, defendendo que deve ser o Parlamento a dar um “sinal mais forte” para o reforço da participação política. Eduardo Ferro Rodrigues apontou caminhos que já subscreve há anos, considerando que se deve “avaliar seriamente” o alargamento da limitação de mandatos (agora só aplicáveis ao Presidente da República e autarcas) e das acumulações de cargos, assim como ponderar “incentivos eficazes à dedicação exclusiva” no Parlamento - ideia que o seu partido não acolhe. Quer envolver a sociedade civil na discussão – algo pouco feito, por exemplo, na actual comissão da transparência – e marca já o calendário das decisões para a próxima legislatura.
Apesar de considerar as críticas “desejáveis”, Ferro Rodrigues diz que são “admissíveis os ataques políticos ao Parlamento e aos deputados”, mas não os de “carácter”. Garantiu que, enquanto se mantiver nestas funções, “os ataques injustos terão sempre resposta” e as “críticas correctas serão sempre impulso para a mudança”, como fez na polémica das viagens pagas em duplicado, pedindo que a comissão da transparência avalie uma eventual alteração à lei.
O Presidente da República ficou-se pela pedagogia mais abstracta: “É essencial evitar fenómenos de lassidão, de contestação inorgânica e anti-sistémica e de cepticismo com os partidos e os parceiros económicos e sociais.” Quis, desta forma, alertar para o facto de Portugal não estar imune a movimentos populistas e não enquadrados nas instituições políticas e sociais, como os que já foram aflorando, por exemplo, a propósito dos incêndios no ano passado. E avisar para o facto de o sistema político português, embora seja resistente, não estar imune aos fenómenos que grassam na Europa. Se até agora não apareceram líderes carismáticos ou partidos anti-sistémicos com relevância, Marcelo teme que isso possa acontecer a qualquer momento.
Quem não quer ser visto como homem providencial é ele próprio. Num exercício de humildade, afirmou que, por mais estratosféricas que sejam as suas sondagens, “não confundimos o prestígio com a popularidade mais ou menos conjuntural de um ou mais titulares do poder com endeusamento ou vocação salvífica”.
Mais tarde, o primeiro-ministro afirmou não ter entendido esta parte do discurso e não saber a quem Marcelo se referia quando falou de endeusamento e messianismo: “É muito difícil interpretar a arte moderna e nem sempre é possível interpretar os discursos modernos”, ironizou António Costa.
Rio: reforma é para “ontem”
Os avisos presidenciais soaram também a alerta sobre uma futura revisão constitucional, a que se referiria pouco depois o líder do PSD nos comentários ao discurso presidencial. “A democracia pressupõe um equilíbrio de poderes, feito de pesos e contrapesos”, disse o chefe de Estado, lembrando que o actual formato parlamentar-presidencialista é uma válvula de escape do sistema.
“No dia em que se rompesse o equilíbrio de poderes a que a nossa Constituição chama separação e interdependência, estaríamos a entrar em terreno perigosíssimo, propício ao deslumbramento, ao auto-convencimento, à arrogância, ao atropelo da Constituição”, alertou.
O presidente do PSD viu nesta parte do discurso um incitamento à reforma do sistema político que é uma das suas bandeiras e até para a revisão constitucional que tem preconizado. "Aquilo que nós temos de fazer - o Presidente da República diz e muito bem - é reforçar a democracia, porque se não a reformarmos o que vai acontecer é a perda da democracia", disse depois Rui Rio aos jornalistas.
O PSD foi, aliás, o único partido que falou desta reforma no discurso oficial, preconizando sobretudo um reforço da transparência “para que sejam conhecidos todos os interesses em causa em todas as decisões tomadas pelos poderes públicos”, dissera Margarida Balseiro Lopes.
Rio sublinhou que a actual Constituição já vigora por um período superior à que a antecedeu, considerando normal "que os regimes sofram um desgaste com o tempo". Da parte do PSD, salientou, "a disponibilidade é acima de total", até porque tal apelo corresponde ao discurso que faz há anos.
"Penso que a altura ideal para iniciarmos essa reforma era ontem”, disse, embora reconheça que é uma reforma mais complexa de fazer na segunda metade da legislatura do que no seu início, mas ainda assim "podem ser dados passos" até às eleições de 2019.
No entanto, não contará com o apoio do CDS neste calendário. O deputado João Almeida manifestou abertura para a reforma do sistema político, passando, por exemplo, por uma revisão das leis eleitorais no sentido de promover a participação dos cidadãos, mas não “em cima de eleições”.
Já Jerónimo de Sousa preferiu apontar as “omissões” da “lição” de Marcelo. O Presidente não falou das “causas” dos tais avanços populistas e conceitos messiânicos e limitou-se a fazer “afirmações gerais” sem indicar “soluções concretas”, disse o líder comunista.