Antonio Banderas é finalmente Picasso

O actor espanhol, que é Picasso na série da National Geographic dedicada aos génios, fala de como as coisas estão a mudar em Hollywood, onde os latinos já não são só os maus da fita. De regresso a Málaga, encarna finalmente um dos grande heróis do século XX.

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Antonio Banderas voltou a pegar em cigarros para fazer de Pablo Picasso Dusan Martincek

Antonio Banderas preparou-se “toda a vida” para este papel: fazer de Pablo Picasso, o espanhol mais famoso do século XX, e tal como ele nascido em Málaga. Não fossem os olhos de Antonio Banderas e seria difícil reconhecer o actor espanhol, actualmente com 57 anos, que surge com cabelo e sobrancelhas rapadas, porque as filmagens tinham terminado há pouco, mesmo a tempo de poder comemorar a Semana Santa, uma época importante para qualquer malaguenho digno desse nome.

Quando encontramos Banderas em Málaga na ante-estreia mundial de Genius: Picasso em Espanha, ele ainda está em personagem, como explica numa entrevista com a imprensa estrangeira sobre a série que esta quinta-feira estreia no canal National Geographic, às 22h10: “Ainda estou lá. Há poucos dias estava numa cozinha em Budapeste a ter uma grande discussão com Françoise Gilot”, uma das musas e mulheres de Picasso, explica o actor sobre a série de dez episódios que, além de Málaga e Budapeste, também foi filmada em Paris, Barcelona e Malta. “Havia dias em que acordava um homem de 90 anos e ia para o duche como um homem velho. Estive sete meses em personagem, porque rodei durante cinco meses e estive a treinar outros dois. Há movimentos específicos de Picasso que eu metabolizei.” 

Antonio Banderas conta aos jornalistas que todos os dias eram precisas cinco horas de caracterização para conseguir transformar Antonio em Pablo, passando pela trabalhosa colocação de próteses de silicone e de uma cabeleira que provocava muito calor: “Nós temos expressões na nossa cara que têm a ver com as nossas sobrancelhas ou com o nosso nariz. A maquilhagem pode ser um obstáculo se não soubermos como usar a máscara.” E o actor exemplifica aos jornalistas como uma caracterização como esta pode tornar difíceis gestos tão simples como passar a mão pelo cabelo ou tocar no nariz. 

Foi na Plaza de la Merced de Málaga, onde estamos agora, que este papel, de certa forma, se começou a compor. Viemos até ao Museu Casa Natal Picasso para tentar imaginar a mãe do actor espanhol a repetir todos os dias a mesma lengalenga quando passava, a caminho da escola com o pequeno Antonio pela mãe, em frente ao nº 15 da praça, no relato que Banderas fez aos jornalistas em voz de falsete. “Picasso nasceu aqui...  Picasso nasceu aqui…”. E é o que se lê numa das placas sobre a Casa Natal Picasso: “O edifício em que nasceu Pablo Picasso em 1881 e onde viveu até 1884 guarda obras e alguns objectos pessoais do artista e da sua família.”

Por estes dias de férias da Páscoa, as pequenas salas compostas com a memorabilia dos dez anos que a família Ruiz passou na cidade – Picasso é o apelido da mãe – estão cheias de estudantes estrangeiros em visitas de estudo. Há todo um roteiro em Málaga dedicado ao mestre do cubismo, que pode incluir uma selfie com a escultura-banco de Picasso ainda na Plaza de la Merced (tipo Fernado Pessoa na Brasileira de Lisboa), mas também uma visita ao Museu Picasso Málaga ou à La Malagueta, a praça de touros onde o jovem viu a sua primeira corrida, uma das cenas que vemos no primeiro episódio.

Prevista para estrear em 172 países, a série Genius: Picasso deverá trazer novos turistas à cidade espanhola, num ano que está a ser visto como um regresso da “Picassomania”, com acontecimentos como a exposição Picasso 1932: Love, Fame, Tragedy, a primeira individual que a Tate Modern de Londres dedica ao artista, e uma série de leilões marcados para Maio, que levarão à praça obras como Fillette à la corbeille fleurie (1905), jóia da coroa da colecção David Rockefeller, pertencente ao período rosa do artista, que teve uma estimativa inicial de venda pela Christie's de 70 milhões de dólares (57 milhões de euros), corrigida depois para 120 milhões (98 milhões), segundo escreveu a revista Forbes.

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Picasso (Antonio Banderas) com Dora Maar (Samantha Colley) na praia, aqui numa cena filmada em Málaga Dusan Martincek

Pintar a Guernica em L.A.

Apesar de Federico Fellini ter sonhado três vezes com o pintor mais conhecido do século XX – ficamos a saber no Museu Picasso, numa belíssima exposição dedicada ao fascínio do realizador italiano pelo artista espanhol –, não é fácil imitar os gestos de Picasso em movimento, porque há poucas gravações que o tenham registado, apesar de ter morrido em 1973 com mais de 90 anos, explica Antonio Banderas aos jornalistas durante a meia hora que durou a entrevista colectiva num hotel situado em frente ao Mediterrâneo. “Mas a maneira como ele está de pé é muito específica. É muito frontal. Ele não aborda uma tela de lado, não entra pelo canto de uma câmara e tem também essa atitude frontal em relação à vida.” Há muitas fotografias de Picasso em que ele está de braços cruzados, nota o actor, que estudou a linguagem corporal do artista, "embora no seu caso, ao contrário do que é normal, isso deva ser lido como uma atitude de comando, quase militar, em vez de insegurança". 

Para encarnar Picasso, Antonio Banderas teve de voltar a fumar, porque Picasso surge muitas vezes retratado de cigarro na mão, principalmente quando está a pintar. “Foi mau para mim porque eu parei de fumar no ano passado. Deram-me cigarros feitos de pétalas de rosa. Não sei o que isso significa. Tentei não inalar.” Há um ano, lembra, teve um ataque cardíaco, mas apesar de se sentir “perfeito” a verdade é que tem três stents nas artérias coronárias. “Quando nos acontece algo como isto, sentimo-nos muito vulneráveis. Vivemos a vida porque podemos morrer amanhã. É o conselho que dou a toda a gente.”

Foi em 2012 que Antonio Banderas pensou, seriamente, que podia aceitar o desafio de ser Picasso, através de um convite feito pelo realizador espanhol Carlos Saura. Mas 33 Días, que quer contar no cinema o tempo intenso que Picasso levou a pintar Guernica, a obra-prima do artista sobre a guerra civil espanhola, ainda não arranjou todo o financiamento. Foi nessa altura, explica ao PÚBLICO Banderas, que começou a ter aulas de pintura, já num processo de investigação para fazer o papel. “Pintei a Guernica em Los Angeles, completa, com nove metros. Tive aulas com uma professora e pintámos a Guernica durante quatro meses.” Agora, para a série de televisão, voltou a copiar algumas das pinturas do mestre cubista para ficar familiarizado com os pincéis, as telas, os óleos, os acrílicos. Copiou um retrato de Dora Maar, outra das musas do artista, e uma natureza-morta com umas chaves. “Há um retrato que ele fez de si próprio, praticamente dias antes de morrer, em que podemos ver a morte. É um desenho a lápis, só a sua cara a olhar para nós... E depois morreu. É muito forte. Pintei isso ao vivo no plateau.”

No primeiro episódio, quando se prepara para responder à encomenda de Guernica, que tinha de estar pronta a tempo de ser exibida em 1937 no pavilhão espanhol da Exposição Universal de Paris, vemos Picasso-Banderas a hesitar diante da tela branca, ao lado de Dora Maar, a fotógrafa que documentou todo o processo de criação. “Claro que temos um paralelo na vida de actor com essa ansiedade de não saber o que fazer. Esse é o momento mais vertiginoso para qualquer artista, o momento do vazio”, comentou ao PÚBLICO.

Quais são os outros paralelos que Antonio Banderas consegue estabelecer com Picasso, além de ter nascido em Málaga? “Estamos a falar do maior artista, um dos grandes artistas, do século XX. É um mega-artista, uma mega-estrela, por isso é muito difícil estabelecer comparações. Nascemos ambos em Málaga, isso é objectivo. Deixámos Málaga para fazer a nossa vida fora do país, sim. Ambos ficámos mundialmente conhecidos por causa da nossa actividade, mas, para lá disso, eu tenho que parar...”

E o que é ser malaguenho? – perguntamos a Banderas. É ser andaluz, do sul, começa por responder ao PÚBLICO: “Nós amamos a vida sem nenhuma razão especial, porque somos muito conscientes da morte. Se analisarmos todos os artistas andaluzes, de Federico García Lorca a Manuel de Falla, mesmo Picasso, a morte é uma constante na arte. É a única certeza, e tudo o resto é relativo. Incluindo os impostos! A morte é perfeita.” É isso que se vê na Semana Santa, nas ruas, defende, dizendo que é fundamental assistir a uma dessas procissões: “A origem é religiosa, espiritual, mas é também uma questão de identidade. É sobre como o flamenco ou o barroco são muito fortes aqui na Andaluzia. Vemos muita coisa a acontecer na rua com a Semana Santa, com a Paixão de Jesus, mas vem dos Idos de Março, dos tempos romanos, quando o Inverno se prepara para morrer mas há a ressurreição da Primavera.”

Hollywood mudou

Quando chegou a Hollywood, há mais de 20 anos, não se viam cineastas como o mexicano Guillermo del Toro a arrebatar Óscares. “O facto de isso estar a acontecer na América é muito importante, porque quando cheguei não era assim.” Durante a rodagem de Os Reis do Mambo (1991), o seu primeiro filme em Hollywood, os actores com quem trabalhou disseram-lhe logo que nos Estados Unidos faria apenas papéis de mau da fita. “Isso é para os negros e para nós, os latinos. Depois comecei a descobrir que as coisas estavam a mudar. E um dia consegui uma máscara, uma espada e uma capa, e o mau da fita tinha olhos azuis. De repente, eu era o herói”, lembra a propósito de A Máscara de Zorro, em que contracenou com Catherine Zeta-Jones.

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A actriz Clémence Poésy é Françoise Gilot, autora do livro A Minha Vida com Picasso Dusan Martincek

Mas é preciso sair do mundo do cinema, defende, para perceber o que está a acontecer nos EUA, mais recentemente, em relação ao reconhecimento da cultura latina. “Há ondas de emigração que vieram para os EUA, de Cuba, da Argentina, do México, de todos estes países, com situações que eram difíceis, problemas políticos, sociais, económicos. Essas gerações trabalharam muito e puseram os filhos na universidade. Eles agora são médicos, astronautas, estão na política e no Supremo Tribunal. A comunidade hispânica ganhou um novo orgulho e diz que já não está nos EUA só para lavar pratos e estacionar carros.” Hollywood precebeu essa audiência potencial e agora já se vê um Javier Bardem, uma Penélope Cruz. “Este ano houve queixas antes dos Óscares da comunidade latina, pedindo mais papéis para eles. E eles têm razão. Há que ser reivindicativo.”

As coisas mudaram drasticamente, sublinha, e uma delas, dizemos nós, é Banderas poder fazer de Picasso numa série da National Geographic. A ele coube fazer o Picasso mais velho, enquanto o jovem Picasso ficou a cargo do actor norte-americano Alex Rich, que teve que imitar a maneira como o actor espanhol fala inglês. Na temporada passada, dedicada ao génio Albert Einstein, o papel do cientista foi dado ao britânico Geoffrey Rush.

Hoje, Antonio Banderas já não vive só em Los Angeles, principalmente depois do divórcio de Melanie Griffith, e agora que a sua filha, Stella, já tem 21 anos. Ao contrário de Picasso, a sua arte não é mais importante do que tudo, conclui: “Mas às vezes sinto que perdi os melhores momentos da minha melhor produção, que é a minha filha. Foi um grande sacrifício, acreditem, os dias que fiquei longe dela a trabalhar. Pablo levava o envolvimento com a sua arte até à última expressão: era a sua grandeza e a sua miséria.”

O PÚBLICO viajou a convite da National Geographic

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