Estado gastou 66 milhões em contratos que terão sido obtidos através de luvas
Ex-secretário de Estado recebeu quase 220 mil euros como consultor do grupo GPS, montante que o Ministério Público diz ser a contrapartida pelo favorecimento daquele grupo.
O Ministério da Educação pagou mais de 66 milhões de euros, entre 2005 e 2013, só a quatro colégios privados do grupo de ensino GPS, estabelecimentos esses que terão conseguido os contratos de apoio financeiro do Estado devido ao pagamento de luvas ao ex-secretário de Estado adjunto e da Educação José Manuel Canavarro e ao antigo director regional de Educação de Lisboa José de Almeida. As informações constam da acusação deste caso, um documento com 268 páginas a que o PÚBLICO teve acesso.
As contrapartidas para favorecer aquele grupo, diz a acusação, terão sido pagas através de cargos remunerados que os dois decisores públicos ocuparam no grupo pouco tempo após terem abandonado as funções públicas, em 2005. José Manuel Canavarro terá recebido quase 220 mil euros como consultor do Departamento Pedagógico do grupo entre 2005 e 2011. Já José de Almeida terá arrecadado mais de 68 mil euros entre 2005 e 2009, tendo continuado a colaborar com o grupo pelo menos até 2013.
José Manuel Canavarro, cuja casa foi alvo de buscas em 2014, confirma que recebeu as verbas, mas sublinha que as mesmas dizem respeito a uma prestação de serviço no âmbito da qual passou recibos verdes e pagou os respectivos impostos. A advogada de José de Almeida optou por não fazer comentários.
A acusação precisa a intervenção que os dois responsáveis do Ministério da Educação tiveram no processo de financiamento público de quatro colégios privados criados em Mafra e nas Caldas da Rainha e diz que os decisores deram “rápido seguimento aos pedidos formulados pelos colégios GPS, para que o núcleo fundamental das decisões fosse adoptado antes de cessarem as funções exercidas”. Isto, porque em Dezembro de 2004 o Presidente da República dissolvera o Parlamento, fazendo cair o Governo de Santana Lopes e obrigando a novas eleições.
Os processos relativos ao financiamento de dois colégios das Caldas da Rainha, por exemplo, deram entrada na Direcção Regional de Educação de Lisboa a 27 de Janeiro de 2005 e no dia seguinte já José de Almeida pedia à rede escolar para realizar o respectivo estudo técnico. Menos de duas semanas depois já uma professora requisitada tinha feito a informação pedida, na qual, a 10 de Fevereiro, José de Almeida emitia parecer considerando que a criação dos dois colégios permitiria “superar a ruptura de rede pública a partir de Setembro de 2015”.
Ruptura da rede pública?
A decisão é deixada à consideração do então secretário de Estado José Manuel Canavarro, que, a 15 de Fevereiro – cinco dias antes das eleições –, numa altura em que o Governo de Santana Lopes já se encontrava em gestão, comprova “efectivamente existir ruptura na rede pública”, considerando que se devia “equacionar” a celebração de contratos de associação.
José Manuel Canavarro garante que não atribuiu qualquer direito ao grupo GPS, precisando que o primeiro contrato de associação foi assinado em Novembro de 2006, 20 meses depois de sair do Governo. Quanto à existência de uma situação de ruptura que validou, reage: “Se não houvesse ruptura, como é que os contratos foram renovados durante mais de dez anos?” Também rejeita a ideia de rapidez. “Houve apenas preocupação para dar resposta a uma situação de ruptura.”
No entanto, outras diligências com vista à resolução da mesma situação de ruptura tiveram um tratamento muito diferente. Foi o que aconteceu com um pedido de ampliação das instalações de uma escola pública, a Secundária Raul Proença, das Caldas da Rainha, que também pretendia solucionar a ruptura de oferta de ensino no concelho. O requerimento feito pelos responsáveis da escola, dirigido a José de Almeida, foi entregue a 21 de Dezembro de 2004, mas só chegou à técnica da equipa da rede escolar mais de seis meses depois, em Julho de 2005. A técnica era a mesma professora requisitada que dera informação no caso dos colégios do GPS.
Corrupção passiva
A acusação imputa a Canavarro um crime de corrupção passiva, o mesmo ilícito por que está acusado José de Almeida. Cinco administradores do grupo GPS – António Calvete, António Madama, Manuel Madama, Fernando Catarino e Agostinho Ribeiro – respondem, em co-autoria, por dois crimes de corrupção activa. Além disso, o Ministério Público (MP) imputa-lhes um crime de peculato, um de falsificação, outro de burla qualificada e outro de abuso de confiança qualificada.
Esta panóplia de crimes está relacionada com o facto de os cinco administradores se terem alegadamente apoderado de “quantia que, pelo menos, ronda os 30 milhões de euros dos cerca de 300 milhões que receberam do Estado ao abrigo de contratos de associação”.
A acusação detalha um complexo esquema de movimentos financeiros cruzados entre os colégios do grupo, duas sociedades-mãe, diversas empresas do grupo fora do âmbito do ensino e outras sociedades de consultadoria detidas pelos administradores a título pessoal. Estas últimas terão sido usadas para emitir facturas referentes “a serviços que não foram efectivamente prestados, dando aparência de negócios a fluxos de dinheiro destinados a ingressar nas suas esferas patrimoniais pessoais”.
O Ministério Público nota que essas empresas “não têm actividade, estrutura física, instalações, funcionários ou logística”. Os administradores ainda incluiriam nas contas do grupo despesas de carácter pessoal. Exemplo disso é um cruzeiro, realizado em Abril de 2005, nas Caraíbas do Sul que custou mais de 21 mil euros ou uma refeição para três pessoas no restaurante O Manjar do Marquês, em 2010, que custou 1440 euros.
Até 2010, o modelo de financiamento dos contratos de associação previa o financiamento público dos vencimentos dos docentes daquelas escolas privadas que funcionam de forma gratuita face à ausência de escolas públicas na região. E esses vencimentos dependiam do número de horas lectivas prestadas. O MP sustenta que os administradores indicaram ao Ministério da Educação “cargos imputados a determinados docentes, que, na verdade, não existiam”. Com este esquema, diz a acusação, conseguiram obter indevidamente do Estado mais de 803 mil euros, um dos montantes que o MP pede que seja considerado perdido a favor do Estado.
A acusação diz ainda que os cinco administradores se apoderaram de quase 427 mil euros em dinheiro vivo, montante proveniente de receitas de bar e papelaria de vários colégios do grupo entre 2010 e 2014.
O grupo GPS reagiu há quase duas semanas prometendo “uma posição mais substantiva nos próximos dias”, o que ainda não aconteceu. Vincava então que existiam “um conjunto de incongruências que poderão ferir de morte esta acusação”.