Uma grande crise de refugiados e de solidariedade
Os dirigentes europeus acordaram para a crise à sua porta em 2015, quando se estimava que havia 65,3 milhões de pessoas em trânsito no mundo por causa de perseguições políticas, conflitos armados, violência ou violação de direitos humanos.
Fevereiro de 2018: voluntários a limpar a neve de um campo de tendas junto à estação de Tiburtina, em Roma, apelam à população para doar roupas quentes. Não há muito mais que possam fazer. Já se organizaram para gerir edifícios ocupados, mas a polícia esvaziou-os à força e sobram tendas. Quase 700km a norte, há franceses atentos ao telefone. Os seus contactos são passados de boca em boca e quando um grupo se perde na neve dos Alpes é para ele que ligam em busca de resgate.
Há europeus de outras nacionalidades acusados na justiça por ajudarem potenciais refugiados a irem de um ponto a outro ou por terem dado tecto a uma família. Há pelo menos três anos que isso acontece — quem o faz não está disposto a deixar de o fazer.
No fim de 2015, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, então chefiado por António Guterres, estimava que havia 65,3 milhões de pessoas em trânsito no mundo por causa de perseguições políticas, conflitos armados, violência ou violação de direitos humanos. Destas, cinco milhões vinham da Síria, a tragédia que provou como era falsa a frase "nunca mais" e onde continuam a suceder-se Srebrenicas (massacre de oito mil muçulmanos durante a guerra da Bósnia, em 1995).
Foi em 2015 que os dirigentes europeus acordaram para a crise à sua porta. Sabia-se que os sírios viriam em grande número, por exemplo, já que estavam há anos em países onde não podiam trabalhar legalmente e cada vez havia menos ajuda das agências da ONU para distribuir. Dois momentos obrigaram os políticos a debater: o afogamento de 800 pessoas no Mediterrâneo quando o barco em que viajavam da Líbia para Itália se afundou, em Abril; e a imagem de Alan Kurdi, o menino sírio de três anos morto numa praia turca no início de Setembro.
A "crise de refugiados e deslocados" nunca chegou à Europa com a dimensão com que aterrou noutros países. Nenhum dos dez países que acolhem mais refugiados faz parte da União Europeia. Ainda assim, o fluxo de pessoas, com mais de um milhão a pedir asilo em 2015, não tinha precedentes desde a II Guerra Mundial.
O que fizeram os Estados-membros? Enquanto o Parlamento e a Comissão Europeia ensaiavam planos de resposta comum (Agenda Europeia de Migração), muitos países punham em prática medidas unilaterais para desencorajar quem aí vinha. Voltaram a erguer-se muros e cercas, reintroduziram-se controlos fronteiriços e introduziram-se políticas de asilo mais restritivas.
Assim, gente que fugiu para sobreviver, percorrendo o Sara (nunca saberemos quantos morrem no caminho do deserto) e atravessando o Mediterrâneo, muitas vezes com filhos de colo, acabou em campos de tendas improvisados e em condições miseráveis junto a fronteiras, acreditando que estas iriam voltar a abrir para a sua passagem.
Junho de 2016: "Enfrentamos a maior crise de refugiados e deslocados do nosso tempo. Isto não é uma crise de números, é uma crise de solidariedade", afirmou Ban Ki-moon, o coreano que antecedeu Guterres como secretário-geral da ONU.
Do Reino Unido a Itália, "os partidos populistas da direita radical e outros populistas, todos exploraram a oportunidade política oferecida pela crise de refugiados para fortalecer as suas posições anti-establishment", escreve Stella Gianfreda, do Instituto de Direito, Política e Desenvolvimento de Pisa, num trabalho sobre a "politização da crise de refugiados".
Nada que os académicos que se dedicam ao populismo não tivessem antecipado. Tal como os dirigentes europeus sabiam que a crise ia chegar e que podiam tê-la preparado, evitando assim o aspecto caótico de centenas de milhares de pessoas a atravessar a Europa em direcção à Alemanha ou as cenas de confronto com guardas fronteiriços. Tudo aspectos que contribuíram para que a crise fosse usada pela extrema-direita e pelo populismo.