À boleia do Carnaval, Temer entrega segurança do Rio ao Exército
Oposição diz tratar-se de jogada política de um Presidente impopular e receiam que a medida possa promover violações dos direitos fundamentais da população.
A inédita decisão de entregar a gestão da segurança do Rio de Janeiro ao Exército está a desencadear uma onda de preocupações entre uma sociedade ainda traumatizada pela ditadura militar. Os críticos dizem que o Presidente Michel Temer está apenas concentrado em melhorar a sua popularidade.
A intervenção do Governo federal na metrópole brasileira foi anunciada por Temer na sexta-feira, mas só nos últimos dois dias recebeu confirmação por parte do Congresso dos Deputados e do Senado. Caso não seja revogada, a medida deverá vigorar até 31 de Dezembro.
A visão de tanques e militares fardados a policiar as ruas do Rio de Janeiro não é nova. Nas últimas duas décadas, o Exército foi chamado a intervir em várias ocasiões para ajudar a combater a criminalidade organizada, ao abrigo do programa Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ainda esta quarta-feira, os militares participaram numa operação de buscas na Penitenciária Milton Dias Moreira, onde dias antes tinha havido um motim, mas ainda fora do âmbito do decreto da intervenção federal.
Agora, porém, a medida é mais abrangente. O Governo federal retirou ao poder estadual as competências sobre a segurança pública e depositou-as nas mãos de um só homem, o general Walter Braga Netto, que passa a ter a seu cargo a supervisão sobre quase cem mil efectivos, entre Exército, polícia civil e militar, guardas prisionais e até bombeiros. A imprensa brasileira já o apelida de “governador da segurança”.
“A intervenção federal é uma medida muito mais drástica do que a GLO, e sinal de uma anormalidade institucional grave”, disse à BBC Brasil a professora da Fundação Getúlio Vargas, Eloísa Machado.
Um dos aspectos mais controversos da intervenção militar no Rio é a possibilidade de serem requeridos mandados colectivos de busca e apreensão para certos bairros. A hipótese foi abordada pelo ministro da Defesa, Raul Jungmann, que a justificou por causa da “realidade urbanística” da cidade. Estes mandados permitem, em teoria, que os militares e as forças de segurança possam entrar livremente nas casas de determinada zona, mesmo na ausência de qualquer suspeita de actos ilícitos.
A legalidade da medida levanta muitas dúvidas e foi a própria Procuradoria-Geral da República a avançar objecções à sua aplicação, através de uma análise elaborada pela chefe da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat. “Mandados em branco, conferindo salvo-conduto para prender, apreender e entrar em habitações, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade e do domicílio”, lê-se no documento subscrito por outros magistrados.
Outro dos problemas sinalizado pela Procuradoria é que a aplicação destes mandados “faz supor que há uma categoria de sujeitos ‘naturalmente’ perigosos ou suspeitos, em virtude da sua condição económica e do lugar onde moram”.
O caso foi também denunciado por várias organizações de defesa dos direitos humanos que alertam para o potencial de violações que este tipo de mandados pode acarretar. “Esta decisão aproxima-se do estado de excepção, um regime penal e processual de guerra, e é a admissão da precariedade da própria operação”, diz o coordenador da Conectas, Rafael Custódio, citado pelo site Ponte.
Fantasma da ditadura
Perante as críticas, o Governo tem tentado acalmar os receios de que a intervenção no Rio de Janeiro possa pôr em causa direitos fundamentais da população. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, disse que a decisão de aplicar mandados colectivos será determinada “conforme a operação”, mas garantiu que nunca poderão ser “genéricos”.
Desde a redemocratização que não havia uma intervenção tão directa do sector militar em contexto civil e a memória da ditadura militar ainda está fresca. A ex-Presidente Dilma Rousseff, que chegou a ser detida e torturada pelo regime, deixou duras críticas à iniciativa do Governo e disse que a aplicação de mandados colectivos são “uma das mais graves violações dos direitos civis que o Brasil enfrenta desde o fim da ditadura”.
Declarações como a do general Eduardo Villas Bôas, que, numa reunião em Brasília disse não querer uma “nova comissão da verdade” depois da intervenção, não têm ajudado a acalmar os receios. As declarações de Villas Bôas, divulgadas pelo El País, referiam-se à Comissão Nacional de Verdade, criada em 2010 para investigar crimes cometidos durante a ditadura, mostram que os militares não querem ser responsabilizados por potenciais abusos cometidos durante as operações no Rio.
O Governo defende que a situação de segurança na metrópole de 6,5 milhões de habitantes se tem degradado, mas a oposição está convicta de que Temer quer apenas retirar as atenções da muito contestada reforma do sistema de pensões – que, entre outras medidas, prevê a subida da idade da reforma.
Enquanto vigorar a intervenção federal, o Congresso não pode votar emendas constitucionais. Para além disso, a um ano das eleições presidenciais, Temer tenta travar a sua impopularidade através de um tema (a segurança) que tem estado na base do apoio recolhido por candidatos como o ultra-conservador Jair Bolsonaro, que só fica atrás de Lula da Silva nas sondagens.
O Carnaval foi mais violento?
Por trás da intervenção no Rio de Janeiro está a convicção de que o período do Carnaval foi particularmente mais violento do que o normal. Dias antes de Temer assinar o decreto, o ministro da Defesa tinha dito que as cenas de violência no Rio durante o Carnaval são “inadmissíveis” e tiveram “impacto entre o Governo”.
Porém, os dados mostram que não houve qualquer escalada de violência. Foram registadas 5865 ocorrências durante os dias de Carnaval, praticamente o mesmo número do ano anterior, em que houve uma greve da polícia civil, enquanto em 2016 houve mais de nove mil, segundo o Instituto de Segurança do Rio.
Ainda assim, jornais como O Globo não deixaram de falar num Carnaval “marcado por um arrastão de violência” e pelas redes sociais circularam vários vídeos de assaltos violentos e agressões. “Não é um retrato fiel de tudo o que aconteceu no Rio, mas é o que as pessoas registaram”, disse ao jornal Estado de São Paulo a investigadora do ISR, Joana Monteiro.
No entanto, em termos gerais, o Rio de Janeiro atravessa um período de violência. O ano passado registou o mais elevado de mortes violentas desde 2009, com 6731 casos registados. No entanto, estados como o Acre ou o Rio Grande do Norte apresentam taxas de homicídios superiores.