Black Panther, filme de super-heróis esplendidamente negro
O Black Panther de hoje é orgulhosamente negro e esperançosamente revolucionário, mesmo dentro de um formato conservador como um filme Marvel. Sobretudo, é uma revolução que é um espelho. O primeiro filme de super-heróis negros com um realizador negro e um elenco maioritariamente negro chegou.
Black Panther carrega a revolução no nome. O herói de fato coleante e garras ao pescoço é o primeiro super-herói negro. Símbolo de negritude próspera, é também sinónimo involuntário do emblemático partido de luta pelos direitos civis dos negros nos EUA – uma proximidade revolucionária que em tempos até tentou sacudir, mudando de nome para um temporário Black Leopard. Mas o Black Panther de hoje é orgulhosamente negro e esperançosamente revolucionário, mesmo dentro de um formato conservador como um filme Marvel. Sobretudo, é uma revolução que é um espelho.
A quantidade de ensaios, testemunhos, posts e artigos jornalísticos na primeira pessoa que a chegada de Black Panther ao cinema suscitou é sintomática. “Desde Malcom X de Spike Lee, em 1992, que não havia tal hype e esperança em torno de um filme no público afro-americano”, resume Salamishah Tillet no New York Times. Um novo hashtag – #WhatBlackPantherMeansToMe – ganha tracção antes sequer de o filme se ter estreado.
Em Junho, o simples lançamento de um dos seus posters chamava a atenção. O retrato de Huey P. Newton, co-fundador do Partido Black Panther, de casaco de pele preta, bóina e lança e espingarda nas mãos sentado numa cadeira ovalada, parecia o antepassado de T’Challa, sentado no seu trono ovalado e afrofuturista, assinalava Zak Cheney-Rice no site Mic. “As duas imagens estão ligadas no tempo e no espaço pela blaxploitation – o género cinematográfico dos anos 1970 que transpôs a política negra radical da sua era para uma série de espalhafatosos filmes de acção de baixo orçamento”, explicava o escritor. Black Panther, “o principal símbolo de autodeterminação negra e de anticolonialismo nos comics mainstream”, e depois a blaxploitation, entrelaçavam-se com as independências coloniais de África, com as ideias de Martin Luther King, com a militância dos Black Panthers.
Vinham do primeiro grito de “Black Power!” pelo activista Stokely Carmichael – “Andamos a dizer ‘liberdade’ há seis anos e não conseguimos nada. O que vamos começar a dizer agora é 'Black Power'!”. Um mês depois desse grito, no Verão de 1966, nascia o Black Panther, herói criado por Stan Lee e Jack Kirby. Em 1972 tentariam torná-lo no Black Leopard porque, explicava o próprio herói nas páginas do comic, com o nascimento posterior do partido a expressão Black Panther tinha “conotações políticas” e “T’Challa é uma lei em si mesmo”. Mas a pantera voltou. E agora, Black Panther é a reflexão necessária, à escala planetária, sobre T’Challa, o rei Pantera Negra da nação ficcional de Wakanda, um país africano que nunca foi colonizado. Um miúdo que se revê no filme de super-heróis, uma comunidade que celebra e reflecte.
Grande operação global, “Hollywood nunca produziu um blockbuster tão esplendidamente negro”, sintetiza Jamil Smith no tema de capa da revista Time. Ryan Coogler, realizador de 31 anos vindo de Fruitvale Station, filme com Michael B. Jordan premiado em Sundance e em Cannes sobre a brutalidade policial, e da refundação de Rocky na perspectiva de Creed, dirige. Chadwick Boseman, B. Jordan, Angela Bassett, Danai Gurira, Lupita Nyong’o, Letitia Wright e Andy Serkis e Martin Freeman actuam num gigantesco filme de efeitos especiais com janelas intimistas para o mundo.
“Quem és tu” é uma pergunta constante num filme que confronta (pelo menos) duas versões da negritude. De um lado, o racismo é sistémico e mortal – “toda a gente morre aqui”, diz o afrodescendente Erik Killmonger (Jordan) na sua casa em Oakland; “seus selvagens”, cospe o mercenário Klaue (Serkis). Do outro lado (do espelho), o racismo é só ridículo – um branco desorientado surge na tecnologicamente avançada Wakanda e chamam-lhe “colonizador” com um sarcasmo que só pode vir da ausência histórica do risco. “Wakanda é uma espécie de utopia negra”, diz Deirdre Hollman, fundadora do festival Black Comic Book do Harlem, ao New York Times. “Para a imaginação negra, isso significa tudo.”
O alívio do contexto
Black Panther, como Mulher-Maravilha no ano passado, é um filme de recordes (nas vendas antecipadas de bilhetes) e primeiras vezes (na associação do seu orçamento à sua negritude), mas sobretudo um filme que não pode ser removido do seu contexto, das suas leituras e expectativas que o rodeiam. E é um filme que dá alívio a essa expectativa e a esse contexto.
“Black Panther emerge num pano de fundo de um sentimento aumentado de tensão e consciência racial, em particular na esteira do movimento Black Lives Matter, na esteira da agência de jogadores de futebol [iniciado por Colin Kaepernick] que se ajoelham para se erguerem contra o tipo de policiamento nas suas comunidades, na esteira de comentários degradantes feitos pelo Presidente respeitando ao estatuto de prestígio de nações africanas [que lhes terá chamado “países merdosos”]”, elenca Adilifu Nama, professor de Estudos Afro-Americanos e autor do livro Super Black: American Pop Culture and Black Superheroes.
“Contra este pano de fundo, um filme que apresenta os feitos negros, os feitos africanos”, diz ao Ípsilon por telefone, “ecoa nas comunidades negras em geral e comunidades afro-americanas em especial. O contexto é um tipo de exigência exacerbada por uma nova narrativa, ou por uma narrativa mais inspiradora, e de muitas formas o filme preenche esse vazio neste momento político e cultural em particular”.
Da violência de Charlottesville ao #OscarsSoWhite, Black Panther é um filme anunciado em 2014 mas que hoje é também um filme pós-Obama. Aflora o isolacionismo – os refugiados “trazem os seus problemas com eles” – de um país que casa as suas tradições com a tecnologia avançada que tem por base um solo rico num poderoso minério – e monta canhões sónicos em lanças. Oferece o reverso da medalha, uma versão bélica e vingativa - “O mundo vai recomeçar e desta vez estamos por cima”. Tudo entre explosões e lutas coreografadas.
Adilifu Nama está ao telefone com o Ípsilon dias depois de ter visto o filme na sua festiva ante-estreia, em que Daniel Kaluuya, por exemplo, usou roupas tradicionais da sua ascendência ugandesa e Black Panther confirmou a trovoada de boas críticas que o rodeia. “O filme tem inúmeras camadas no que diz respeito às implicações raciais e políticas, ao simbolismo e alegorias sobre as tensões históricas da experiência afro-americana e também da dinâmica das [diferentes] orientações sobre a colonização e escravatura de afro-americanos”, congratula-se o professor da Universidade Loyola.
“E não foram forretas nos efeitos especiais”, assinala, enquanto passeia na Disneyland – a Disney é dona da Marvel e inescapável no entretenimento actual. Defende que o contexto foi também determinante numa coisa: “O filme poderia ter sido lançado apesar e independentemente do momento, mas teria tido metade do orçamento”.
Black Panther custou cerca de 163 milhões de euros a fazer e 122 milhões a promover, escreve a Variety, valores dentro da média do filão dos super-heróis, uma amálgama de mais de 30 filmes do género e um subtipo que a cada ano representa ganhos de mais de dois mil milhões de dólares. Só o chamado “universo cinematográfico Marvel” já fez mais de 11 mil milhões de euros numa década.
Uma perspectiva mais cínica sobre o momento e o contexto não é despicienda – os públicos negros também importam. Há dinheiro a fazer e não só uma resposta empoderadora aos movimentos hashtag. Cheo Hodari Coker, produtor da série Luke Cage, dizia ao Guardian há um mês que ao “altruísmo” talvez se junte o factor de um dado projecto ser “comercialmente viável, [e] as histórias interessantes”. No fundo, “a única cor que importa verdadeiramente é o verde” – a do ecrã chroma que serve de pano de fundo aos efeitos digitais.
Um negro que voa
O livro de Nama, Super Black, começa com uma citação do argumentista de banda-desenhada Dwayne McDuffie, que reflecte sobre a dificuldade acrescida de criar uma personagem negra, porque ela será sempre um símbolo. McDuffie, que morreu em 2011 depois de ter acrescentado personagens negras e femininas ao mundo da DC Comics, disse também: “Uma pessoa não se sente real se não se vê representada nos media. Há algo de muito poderoso em vermo-nos representados”. Quando Adilifu Nama era criança, o avô levou-o a uma loja e deu-lhe a escolher o boneco de um super-herói que queria que lhe comprasse. Em 1975, escolheu sem hesitações o Falcão. “Porquê? Porque era um negro que conseguia voar.”
Tre Johnson, jornalista e educador, na Rolling Stone: “Quando era miúdo, na escola, raramente pegava nos lápis de cor pretos ou castanhos para os meus livros de colorir de super-heróis”. Black Panther é “uma necessidade”, diz Johnson, “pertence-nos a todos”, completa no Guardian Eliza Anyangwe, jornalista e fundadora do projecto The Nzinga Effect. As narrativas de super-heróis cumprem funções tão díspares quanto as de novos mitos fundadores, puro entretenimento ou estímulos de superação das (in)capacidades humanas. Ryan Coogler resumiu a Tre Johnson o seu objectivo: “A pergunta que estou a tentar fazer e responder em Black Panther é ‘O que é que significa verdadeiramente ser africano?’”
O Falcon/Falcão que Adilifu Nama escolheu para o avô lhe comprar é uma personagem que surgiu três anos depois de Black Panther/Pantera Negra, criado em 1966, sucedendo-lhes depois Luke Cage em 1972, a feminina Storm/Tempestade em 1975 ou Black Lightning/Raio Negro em 1977. Hoje, estes pioneiros negros nos comics têm todos uma vida audiovisual, como personagens secundárias filmes ou com séries de TV em nome próprio. O primeiro de todos só agora se torna centro de um filme, o título revolucionário só por ser o primeiro filme de super-heróis negros com um realizador negro e um elenco maioritariamente negro de um grande estúdio, como resume a revista Variety.
Antes dele houve projectos de má memória de super-heróis negros ou seus familiares, como Meteor Man (1993), Blankman (1994), Steel (1997), Spawn (1997) ou a triste Catwoman de Halle Berry em 2004. Blade (1998) foi o melhor exemplo, Hancock (2008) a carta fora do baralho e Storm, War Machine e Falcon foram aparecendo nos filmes X-Men e Vingadores; Michael B. Jordan, Samuel L. Jackson e Idris Elba ocuparam lugares de personagens brancas no Quarteto Fantástico (2015) e nos filmes de Os Vingadores, respectivamente.
O rasto, chegados ao 18.º filme do universo Marvel, não era orgulhoso. Agora, Black Panther chega em hipérbole. Nos livros, os seus autores são já Ta-Nehisi Coates, premiado com o National Book Award, e a poeta Yona Harvey e Roxane Gay, professora e autora da colecção de ensaios Bad Feminist, as primeiras mulheres afro-americanas a trabalhar como autoras principais na Marvel. No filme, a equipa, da direcção de fotografia à edição passando pelo vibrante guarda-roupa e pela banda-sonora comissariada por Kendrick Lamar, é essencialmente negra e feita de colaboradores regulares de Coogler.
Mas este é também o reencontro com uma história que, no ano do 50.º aniversário do homicídio de Martin Luther King, não avançou assim tanto. Nele estão “temas que não foram resolvidos desde o tempo do cinema blaxploitation” e que, defende o académico, “são parte do pathos e do ethos e da construção do mito da sociedade americana. Não é uma surpresa que se vejam estas tensões mesmo num filme que opera no grande estado de fantasia da nação de Wakanda. São questões e ideias e tensões que fazem parte do contexto político-cultural da América”.
Ainda assim, o momento é de celebração. “Nunca em Hollywood tivemos a oportunidade de mostrar o continente de forma intelectual – tinha tudo sido ‘África, chãos de terra’”, exemplifica a designer de guarda-roupa, Ruth E. Carter. Wakanda é “ouro afrofuturista” para Eliza Anyangwe. Quase afropunk nalgumas das suas encarnações, e com “muita black girl magic”, como elogia Adilifu Nama, “o filme também mostra um tipo diferente de negritude, que eu chamo de ‘astral blackness’ – uma forma de representação que transcende o tempo, que opera no reino da magia”, acrescenta. “Esse tipo de representação é muitíssimo diferente das fórmulas da negritude como símbolo de ameaça urbana, como símbolo de cool urbano, figuras exclusivamentes ligadas a um passado racista. Black Panther dá uma visão fantástica do que pode ser a negritude e força-nos a reimaginar a negritude.”