"Chumbo" do gasoduto da REN no Douro está nas mãos do Governo
A Agência Portuguesa do Ambiente enviou à tutela uma proposta de Declaração de Impacte Ambiental (DIA) desfavorável. Efeito do gasoduto na paisagem protegida do Alto Douro Vinhateiro seria “irreversível”, diz a Direcção-geral do Património Cultural
Se quiser uma terceira interligação à rede de gás natural espanhola, Portugal terá de encontrar uma alternativa à construção de um gasoduto em Património Mundial da UNESCO. É isso que, à primeira vista, resulta do parecer negativo da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ao projecto da REN para construir uma linha de transporte de gás até à fronteira espanhola através da paisagem protegida do Alto Douro Vinheiro.
“Com base no parecer técnico final da comissão de avaliação, bem como no relatório da consulta pública” ao projecto, a APA “considerou existirem fundamentos que justificavam a emissão de uma proposta de Declaração de Impacte Ambiental (DIA) desfavorável” à construção do gasoduto entre Celorico da Beira (Guarda) e Vale de Frades (Bragança), confirmou a APA ao PÚBLICO.
Segundo a Agência, a proposta de DIA desfavorável já foi enviada ao secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins. O governante tem dez dias para emitir a DIA a partir do momento em que recebe a proposta, embora o prazo possa ser suspenso para que a REN faça comentários em sede de audiência prévia.
O PÚBLICO perguntou ao Ministério do Ambiente se a tutela vai acolher o parecer negativo da APA, mas não obteve resposta em tempo útil. A REN não quis comentar o parecer, nem revelar se há alternativa ao traçado do gasoduto que submeteu a avaliação ambiental em Janeiro de 2016 e que está orçamentado em 115 milhões de euros (que serão pagos pelos consumidores de gás).
Como o PÚBLICO noticiou em Julho, segundo os planos da concessionária da rede de transporte de gás natural (controlada pela chinesa State Grid), a infra-estrutura de 160 quilómetros atravessaria pelo menos 35 km da Paisagem Cultural do Alto Douro Vinhateiro (inscrita na lista do Património Mundial da UNESCO desde 2001). Para a Direcção-geral do Património Cultural (DGPC) – que tutela este bem protegido e que em Setembro fez chegar o seu parecer vinculativo à APA – não restam dúvidas de que aceitar o projecto, “tal como foi apresentado, implicaria a aceitação da afectação direta de parte do bem classificado como Património Mundial e Monumento Nacional”.
Afectação que segundo a entidade liderada por Paula Araújo da Silva seria “certa, permanente e irreversível”. Por isso a DGPC opôs-se a uma obra que “produzirá um impacte directo, negativo, muito significativo e dificilmente minimizável ou compensável” no Alto Douro Vinhateiro. Mais concretamente, o parecer foi desfavorável para os troços 3, 4, 5 e 6 (de um total de nove) nas duas alternativas de corredor apresentadas pela REN. A existência de um troço comum (troço 5) a ambas, “que incide diretamente no Alto Douro Vinhateiro, não possibilitou a comparação” com outras opções, explica a DGPC. Por isso mesmo, também os troços anteriores e o posterior, que afectam a sua zona especial de protecção, foram chumbados. Trata-se, diz a DGPC, da “intrusão de uma infra-estrutura com carácter industrial, descaracterizadora do território e dos seus usos, comprometendo a integridade e o carácter, nomeadamente visual, desta Paisagem Cultural”.
Na última proposta de investimentos na rede de gás que entregou em Junho (e que o regulador da energia, a ERSE, está a apreciar), a REN volta a incluir o gasoduto no Douro, assumindo que este “mantém as suas características técnicas, de traçado e de estrutura de custos”. Mas refere que os impactos negativos “podiam ser eficazmente evitados na fase de seleção de traçados, minimizando a travessia de áreas de Reserva Agrícola Nacional, evitando a generalidade das áreas protegidas e sítios da Rede Natura 2000 e evitando ou minimizando a afectação dos valores culturais ou naturais que conferem Valor Universal Excepcional ao Alto Douro Vinhateiro”.
Não foi essa, no entanto, a opinião das várias entidades que se pronunciaram negativamente junto da APA; entre elas a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Norte, que gere o bem protegido do Alto Douro Vinhateiro, e a Fundação Côa Parque, gestora do bem Sítios Pré-Históricos de Arte Rupestre do Vale do Rio Côa e de Siega Verde, como revelou a Comissão Nacional da UNESCO (que funciona na dependência do Ministério dos Negócios Estrangeiros e foi “informada” do processo em Julho).
“Atendendo à tipologia de projecto e à sensibilidade inerente à maior parte do traçado” e às “condicionantes existentes ao longo de grande parte da extensão do território atravessado”, a comissão de avaliação da APA (que reuniu os “pareceres das entidades representadas e de outras”) concluiu que o parecer técnico final teria de “ser desfavorável à globalidade” da obra, resumiu a DGPC.
Podem estes pareceres travar a empreitada? “Uma eventual declaração por parte do Governo de interesse nacional ou prioritário deste projeto deverá ter em conta os pareceres emitidos pelas diversas entidades representadas na comissão de avaliação”, responde a DGPC.
Uma ambição antiga que teima em sair do papel
Travando-se o gasoduto da REN – que passaria por Celorico da Beira, Trancoso, Meda, Vila Nova de Foz Côa, Torre de Moncorvo, Vila Flor, Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Bragança e Vimioso (Vale de Frades) – surgiria a incógnita sobre o futuro da terceira interligação de gás Portugal/Espanha.
Trata-se de uma obra que o comissário europeu da energia, Arias Cañete, considerou, numa entrevista ao PÚBLICO, “absolutamente necessária”, que tem sido defendida pelo Governo português, e que a REN conseguiu reinscrever na última lista de Projectos de Interesse Comum (PIC) da União Europeia (elegíveis para financiamento do Mecanismo Interligar Europa, ou CEF), publicada em Novembro.
A infra-estrutura (que permitiria uma capacidade de importação e exportação diárias de 70 Gigawatts hora) tem sido defendida como um dos eixos para completar o mercado interno da energia e garantir a segurança do abastecimento europeu (reduzindo a dependência do gás russo através de importações marítimas pelo terminal de Sines), mas também para dar impulso ao mercado ibérico do gás, aumentando a concorrência.
Em Dezembro de 2016, em declarações ao Dinheiro Vivo, o secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, dizia-se confiante quanto ao arranque do gasoduto, após a garantia de Bruxelas de que a interligação Espanha/França (sem a qual a Península Ibérica continuará uma “ilha energética” sem ligação à rede central europeia) seria uma realidade. “A única questão que existe agora é ambiental, mas estou convencido que tudo se irá resolver. Há um potencial enorme”, afirmou.
A REN, que é remunerada sobre a base de activos regulados e tem mais proveitos quanto maior for essa base, tem há muito a terceira interligação na agenda. Contudo, esbarrou sempre na oposição da ERSE, que analisa os planos de investimento que a empresa apresenta de dois em dois anos olhando para a segurança do abastecimento, mas também para o impacto para os consumidores, que são quem paga o custo das infra-estruturas e têm das facturas mais altas da Europa. O parecer da ERSE é obrigatório, mas a palavra final cabe ao Governo (apesar de estar previsto que os planos passem a ser discutidos no Parlamento).
Em 2013, o regulador já dizia que sem a interligação entre Espanha e França e sem certezas sobre co-financiamento europeu, os custos da nova ligação poderiam ser insustentáveis para os consumidores. E em 2016 voltou a rejeitar o projecto.
Em 2017, a REN voltou à carga, mas em moldes diferentes: o último plano de investimentos veio distinguir entre projectos base e complementares. Os primeiros resultam de uma avaliação técnica quanto aos activos da rede que precisam de ser modernizados e os segundos “da necessidade de criação das condições requeridas para o cumprimento das orientações de política energética, em linha com os compromissos assumidos pelo Estado concedente”.
É neste lote que se insere o gasoduto de 115 milhões de euros (cujo valor inicial eram 137 milhões), que passou a estar condicionado “à decisão de realização” da primeira fase da interligação Espanha/França através dos Pirenéus, e que por isso tem data incerta de execução.
A REN destaca que, tal como em 2015 conseguiu fundos do CEF para desenvolver os estudos de engenharia e de impacte ambiental do gasoduto, mantém “a perspectiva de eventual obtenção de fundos comunitários para o desenvolvimento das fases de aquisição de materiais, construção e comissionamento”. Segundo a empresa, com um financiamento comunitário a 50%, o custo do gasoduto poderia baixar para 85 milhões de euros.