Há muita gente que já deu a volta e ninguém se suicidou

A circunstância de na zona de Pedrógão existir já antes da tragédia uma resposta de saúde mental montada foi decisiva para que as consequências não fossem piores, diz o presidente da comissão de acompanhamento das populações afectadas pelos incêndios, António Leuschner.

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Nélson Garrido

Na zona afectada pelo incêndio de Pedrógão Grande, em Junho, “há muita gente que já deu a volta” e “ninguém se suicidou”. Algumas pessoas em situações mais graves tiveram que ser encaminhadas para a psiquiatria mas foram uma excepção, garante António Leuschner, presidente da comissão de acompanhamento na área da saúde mental das populações afectadas pelos incêndios. Devíamos ter em cada distrito ou em cada agrupamento de centros de saúde uma equipa de saúde mental comunitária, recomenda o psiquiatra, para quem o importante agora é enfrentar "a realidade do futuro com a dureza do passado”.

A assistência psicológica à população afectada pelo incêndio de Pedrógão Grande em Junho e pelos incêndios de Outubro está a ser a suficiente, a adequada? Há familiares de vítimas que se queixam de não terem apoio.
Há muitos mitos urbanos. As pessoas têm a ideia de que as melhores terapêuticas são aquelas que existem nas avenidas novas, em Lisboa, ou nas avenidas do Porto. A ideia de que é preciso um profissional muito diferenciado na área do luto para poder intervir numa situação destas é um disparate. Não há nenhum cidadão adulto que não tenha tido já uma perda — de familiares, de amigos, por causa do desemprego ou de relações afectivas. Normalmente as pessoas respondem bem. Só quando se cai em situações de luto complicado, em que não há uma recuperação quase espontânea, em que não se consegue dar a volta, é que é necessário acompanhamento mais especializado.

O que se passou em Junho é comparável com o que se passou em Outubro?
Do ponto de vista mediático, o impacto dos incêndios de Outubro não se compara com o do incêndio de Junho. Não teve o mesmo dramatismo mediático. Quando se fala dos incêndios deste ano, fala-se de Pedrógão. Isto significa que os portugueses aprenderam alguma coisa, ainda que pelas más razões.

O que foi feito em Pedrógão para apoiar psicologicamente os familiares das vítimas?
Nas primeiras horas, foi necessária uma intervenção massiva, do INEM, de profissionais da segurança social, das forças armadas e até dos fuzileiros. Mas há uma circunstância que não me canso de salientar. O primeiro incêndio aconteceu numa zona que tem em funcionamento, desde há alguns anos, equipas de saúde mental comunitárias. Na área de Coimbra havia um hospital psiquiátrico, o Sobral Cid, que foi fundido com o hospital universitário, criou-se o CHUC [Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra], e as equipas do Sobral Cid começaram nessa altura a fazer intervenção na comunidade na zona do Pinhal Interior, que apanha toda aquela área de Pedrógão, de Figueiró dos Vinhos. A circunstância de na zona de Pedrógão e arredores existir já uma resposta de saúde mental montada foi absolutamente decisiva para as consequências não serem piores. Infelizmente, estas equipas ainda não existem de uma forma generalizada em Portugal.

Nos incêndios de Outubro foi diferente. Este tipo de resposta existia nessa zona?
Em Outubro não foi possível dar uma resposta deste tipo. Mas em Penacova foi destacada uma equipa dos CHUC para dar apoio imediato de maior proximidade. Não iam lá regularmente, porque não havia uma equipa sediada lá, mas foi colocada ali uma unidade de campanha, que começou por ter uma grande procura, que agora se está a esbater. Oliveira do Hospital tem também uma equipa deste género que depende do hospital, mas não terá o mesmo tipo de funcionamento e articulação.

O que fez a comissão, afinal?
A comissão não deve ter a veleidade de fazer o acompanhamento. Costumo dizer que esta comissão é de acompanhamento dos acompanhamentos. Aquilo que podemos fazer numa comissão central é o balanço. Estamos, aliás, neste momento à espera de financiamento para fazer um inquérito à população, para perceber como se sente, seis meses depois, qual foi o impacto da intervenção.

Como estão a reagir os familiares das vítimas e outras pessoas afectadas?
Uma das coisas que acho que fica claro nas reportagens televisivas que vi nos últimos dias é que há muita gente que já deu a volta. Há um senhor já com alguma idade que diz: “Perdi as minhas galinhas, os meus porcos, o meu quintal, tudo. Mas o que me adianta ficar a pensar? Tenho que continuar a comer, a beber.” É uma lição de vida. O que é importante é estimular isto, não o “ai Jesus, o que me foi acontecer”. Até do ponto de vista de saúde pública, de saúde mental pública. O que se passou foi terrível, evidentemente é necessário retirar múltiplas ilações, sobre a protecção das florestas, as limpezas, o minifúndio, etc., mas tudo isso não tem a ver com saúde mental. É preciso perceber o que é que vai ajudar as pessoas daquelas zonas que foram profundamente causticadas. E o sofrimento não tem necessariamente a ver com dados objectivos.

Mas já se definiu que as indemnizações terão um valor mínimo de 70 mil euros.
Neste tipo de perdas há sempre uma componente objectiva e outra subjectiva. A subjectiva é complicada. Há pessoas que podem não ter um curso superior, mas são extremamente importantes para outras para quem, por vezes, são o único amparo. Um filho que morre a uma mãe de 90 anos que está acamada — como é que isto se quantifica? Depois, vai-se ver se a vítima era mais nova, se era mais velha, se demorou mais ou menos tempo a morrer. Isto é mórbido. Nos danos patrimoniais deve avançar-se quanto antes com indemnizações. Mas, nas indemnizações por perdas humanas, neste lado subjectivo, acho que se devia ser muito cauteloso.

Quantas pessoas pediram e quantas tiveram apoio?
No princípio de Julho houve um pico das consultas e de domicílios, depois foi decrescendo. O facto de o incêndio de Pedrógão ter acontecido nas férias acabou por dar oportunidade às pessoas de prestarem mais atenção. Em Oliveira do Hospital, Arganil e Tábua [incêndios de Outubro], as equipas de saúde mental comunitária também fizeram muitos domicílios, consultas. Algumas pessoas não pediram apoio sequer, outras já ultrapassaram e há outras que não conseguem só por si, sem ajuda profissional. Mas são uma minoria, felizmente. Nem toda a gente precisa de ir ao mais extremo das especializações. As pessoas têm que ter fundamentalmente confiança na rede de suporte: familiares, amigos, vizinhos. E depois há a rede do médico de família, dos profissionais de saúde, dos presidentes de juntas de freguesia, que são figuras extremamente importantes. Em Lisboa, por exemplo, a Administração Regional de Saúde identificou 24 familiares de vítimas. Nos cuidados de saúde primários foram acompanhadas oito, três foram acompanhadas em serviços de psiquiatria, quatro tiveram consultas de luto no Hospital Santa Maria, duas não quiseram acompanhamento.

O certo é que as pessoas se queixam de falta de apoio psicológico.
Temos a tendência a achar que aquilo que nos acontece é o pior que aconteceu... Na verdade, há tragédias que não se comparam em outros países, nem em número de mortos nem em consequências patrimoniais. Acho bem que as pessoas não se distanciem com frieza, devem dar sinais de que estão solidárias. Mas o pior que pode haver para um decisor é deixar-se afectar demasiado pela emoção, porque corre o risco de errar. Nem oito nem oitenta. Nem excessos de emoção nem gelo.

Mas em Pedrógão Grande houve necessidade de apoio mais especializado? Chegou a falar-se em suicídios...
Ninguém se suicidou. Houve algumas situações mais graves que foram encaminhadas para a psiquiatria, mas foram uma excepção, como são sempre. No total, houve 349 pessoas que durante meio ano tiveram necessidade de procurar uma ajuda de saúde mental comunitária em primeiras consultas. Depois, tivemos 1146 segundas consultas e mais 388 domicílios. As pessoas vão fazendo o luto, é um mecanismo natural de reparação de perdas. Há profissionais destas equipas de intervenção na comunidade que tomaram a iniciativa de prescindir de gozar férias nesta altura do ano. O Natal vai ser para muitas pessoas um momento particularmente delicado, faltarão crianças, pais, avós.

Não foi, portanto, necessário recorrer a profissionais de fora da região?
Houve uma participação do Centro Hospitalar de Tondela/Viseu. A equipa da região Centro recomenda agora no seu relatório final que se continue a investir nas unidades de saúde mental comunitárias. Defendem que em cada centro de saúde haja um médico, um enfermeiro, um assistente social.

Em cada centro de saúde?
Se tivermos em cada distrito ou cada agrupamento de centros de saúde uma equipa destas que, em caso de crise, tome o comando das operações, já será bom. É, no fundo, um mecanismo de prontidão. Isto foi uma boa demonstração de como os recursos locais têm um potencial fundamental.

Como estão as crianças a viver a tragédia?
As crianças estavam habituadas todos os anos a ter incêndios. E era tema habitual fazerem desenhos com bombeiros, com chamas, porque se habituaram a ver aquilo como um espectáculo. Este ano vai ser seguramente diferente, já vivenciaram os incêndios com um sentimento de ameaça.

Quanto tempo pode levar uma pessoa a ultrapassar uma tragédia deste tipo?
Não há médias. Há situações deste género que deixam impactos para mais de dois anos. Há situações que só começam verdadeiramente a ser vividas como traumatizantes ao fim de seis meses.

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