A construção de uma “Polónia autoritária”
Jaroslaw Kaczynski está a criar um “Estado forte” em nome do nacionalismo e em oposição aos valores europeus.
Está a Polónia a voltar as costas à União Europeia? Na próxima semana, vai voltar ao centro das atenções com a votação parlamentar da nova versão da lei sobre o sistema judicial. O ponto fulcral é a “governamentalização” do Tribunal Constitucional (TC), tema de conflito político interno e da prova de força entre Varsóvia e a UE. Diz a oposição que a Polónia deixará de ter Constituição porque deixará de haver uma entidade independente que controle a constitucionalidade das leis. Está em causa um dos pilares da democracia: a separação dos poderes.
O Governo polaco argumenta que a organização do poder judicial é uma competência dos Estados. Sem dúvida, responde a maioria dos Estados-membros. Mas o respeito pelo Estado de direito é uma condição da adesão à UE e, por isso, de competência europeia. “Dentro da UE, o Estado de direito não é uma opção, é uma obrigação.”
Há mais notícias. No dia 11 de Novembro houve em Varsóvia uma manifestação de extrema-direita (na foto) para “defesa da civilização ocidental”, com 60 mil pessoas a gritar: “Polónia pura, Polónia branca!” E com slogans anti-semitas e apelos à violência. O mais relevante não é o crescimento da extrema-direita, coisa já comum em muitos países europeus. Relevante é o facto de o Governo polaco a ter aplaudido, desvalorizando os “pequenos incidentes” que a acompanharam. Apenas o Presidente Andrzej Duda a condenou: “No nosso país não há lugar, nem acordo, para a xenofobia, para um nacionalismo doentio nem para o anti-semitismo.”
Duas semanas depois, na cidade de Katowice, algumas dezenas de manifestantes de extrema-direita enforcaram em efígie eurodeputados da oposição liberal: “A forca para os traidores!” Foi um acto marginal. O seu significado é outro: era “legal”, foi protegido pela polícia e o Governo não condenou.
“Fabricar inimigos”
A “questão da Europa do Leste” perturba a UE. Depois da ruptura da Hungria de Viktor Orbán com o modelo da democracia liberal, o polaco Jaroslaw Kaczynski ganhou as eleições de 2015 com um projecto nacionalista e autoritário, entrando rota de colisão com a UE. E, servindo-se da crise dos imigrantes, Budapeste e Varsóvia atraíram a República Checa e a Eslováquia para o campo da oposição à política europeia.
Convém frisar o carácter específico do caso polaco. A deriva autoritária e eurocéptica não é um fenómeno novo. Não surge na esteira da vaga populista e xenófoba, embora seja reforçado pela crise da imigração. A divisão da Polónia remonta à luta entre “duas elites” durante a Transição pós-comunista, 1989-90. O Lei e Justiça (PiS), o partido dos gémeos Kaczynski (Lech morreu em 2010 num acidente aéreo), governou entre 2005 e 2007. Representado a direita católica integrista e o nacionalismo polaco, abriu uma “guerra” contra o centro-direita liberal que fez as reformas económicas e liderou a democratização. Foi uma “caça às bruxas” — contra os pós-comunistas e, principalmente, contra a elite rival, não poupando sequer Lech Walesa.
O projecto de Kaczynski é criar um “Estado forte” em nome do nacionalismo polaco e em oposição aos valores liberais europeus. Visa o controlo de todas as instituições. Até 2007, o PiS encontrou dois obstáculos: o TC e os media estatais, que mantiveram a independência. De resto, não tinha a maioria absoluta no Parlamento, dependendo de outros partidos da direita.
Conquistada a maioria absoluta em 2015, graças à crise da imigração, à desagregação dos centristas e ao desaparecimento da esquerda pós-comunista, Kaczynski não perdeu tempo. “Normalizou” os media públicos e prometeu “repolonizar” os privados com ligação a capitais estrangeiros. É um especialista da “guerra permanente”. Para avançar, “fabrica inimigos” que servem de bode expiatório. Foram antes a Alemanha e a Rússia, são agora a “Europa” e o “islão”.
Os Kaczynski não vieram da extrema-direita, a sua história é outra. O PiS está a jogar com ela como “força de assalto”. É inquietante a perspectiva de fusão dos dois fenómenos.
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro polaco, acusa Kaczynski de estar a fazer “o jogo de Putin”, apesar dos enraizados sentimentos anti-russos da Polónia. Não há uma viragem para Moscovo, como na Hungria, o que deixaria os polacos em estado de choque. É uma mudança táctica. Kaczynski prepara-se para uma mobilização nacional contra a ameaça de sanções europeias.
“Revolução conservadora”
Os alvos prioritários são agora o sistema judicial e o TC. O ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, é ao mesmo tempo procurador da República. Controlará as nomeações dos juízes. O frágil Presidente Duda vetou em Julho — graças ao apoio da hierarquia católica, note-se — a reforma do TC e apresentou uma nova proposta. Para nomear ou substituir os juízes constitucionais será necessária uma maioria de três quintos no Parlamento. Mas, em caso de impasse, a decisão será tomada por maioria simples. A disposição que baixa o limite de idade de 70 para 65 anos permitirá eliminar 40% dos juízes do TC.
“O seu projecto de reforma da sociedade polaca tem um carácter total”, escreve o jornalista Jakubi Iwaniuk, do diário Gazeta Wyborcza. “Envolve todos os aspectos da vida pública, da economia ao social, passando pela escola, pela cultura e pela História. Os contrapoderes, como o TC, são entendidos como travões da ‘revolução conservadora’ e estão a ser neutralizados.”
Nesta “revolução”, há um dispositivo central: “Como coluna vertebral ideológica, o partido impõe uma nova visão da História. Esta insiste no ‘fracasso’ dos 25 anos da transformação polaca, período marcado pelas ‘patologias do pós-comunismo’, o liberalismo económico ‘selvagem’, a corrupção moral e económica das suas elites.” Os maus polacos têm a “traição nos seus genes”.
O Governo respeita uma única linha vermelha: a repressão das manifestações e a prisão de jornalistas, algo que os polacos não tolerariam.
A deriva polaca põe em causa um mito com dimensão geopolítica, escreve Jacques Rupnik, um especialista do Leste. A transição do comunismo levou à democracia e à integração no clube das democracias, “fenómeno que se presumia ser irreversível”. Nesta época, poucas coisas o são.
Convém, no entanto, não desesperar dos polacos. São artistas do voto e gostam de promover viragens políticas radicais e inesperadas. Por isso, também o autoritarismo de Kaczynski está longe de ser irreversível.