Técnicos denunciam falhas graves na Casa Pia 15 anos depois

Passam 15 anos sobre o escândalo de pedofilia e muito mudou na Casa Pia de Lisboa. Menos jovens acolhidos e lares encerrados não significam desinvestimento, dizem a tutela e a direcção. A posição oficial não convence educadores.

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Das 30 casas de acolhimento, a Casa Pia passou a ter dez além de outras respostas como apartamentos de autonomia Nuno Ferreira Santos

Na cabeça de João Martins, as datas do seu percurso de 23 anos de vida não surgem de forma clara. O importante é a memória do que ganhou — uma família — e perdeu na sua passagem pela Casa Pia de Lisboa. Ligou-se aos colegas, aos educadores, à cozinheira, presença constante no lar interno no espaço de Pina Manique, onde fez muitas amizades. Do escândalo de pedofilia — que se tornou público quando tinha oito anos — lembra-se apenas que provocou uma urgência interna e uma reviravolta na sua vida.

A sua saída de um dos lares internos de Pina Manique para uma residência na linha de Sintra foi o início de um período de mudanças na Casa Pia, em que viu amigos e educadores de referência ou “padrinhos” serem distribuídos por outras casas. As mudanças prolongaram-se até hoje.

Nos últimos 18 meses, a Casa Pia fechou duas residências de acolhimento. Também a Casa Amarela, unidade terapêutica, foi encerrada em Dezembro de 2014, e as crianças e jovens mais problemáticos ali acompanhados foram distribuídos por várias residências.

As mudanças e os fechos aconteceram “por opções de gestão”, justifica Cristina Fangueiro, presidente do Conselho Directivo da Casa Pia desde 2010. Quando uma casa fecha, nenhuma criança fica sem acolhimento.

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Um dos motivos principais para encerrar lares foi a aposta nos apartamentos de autonomia. “Tenho de pôr educadores nos apartamentos e desviar as pessoas que estão no acolhimento para os apartamentos”, explica Cristina Fangueiro, que transitou do Instituto da Segurança Social há sete anos. “As equipas são perfeitamente sustentáveis, seguras, com elevada tecnicidade", defende.

Para quem vive nas casas, porém, a redistribuição cria instabilidade. Não serão as fugas dos lares, as agressões entre jovens ou o seu descontrolo, falhas graves que acabam por motivar o fecho de algumas casas? É o que defendem educadores e ex-educadores contactados, que dizem não poder falar abertamente sobre os problemas vividos na Casa Pia.

Quando passam 15 anos sobre o escândalo de pedofilia — que começou por ser denunciado pelo Expresso em Novembro de 2002 e envolveu 32 vítimas e seis pessoas condenadas —, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) nega a opção de desinvestir no acolhimento e salienta “um esforço de melhoria contínua” e a substituição de colégios internos por lares exteriores na comunidade como bem-sucedida na resposta às recomendações internacionais. A direcção da Casa Pia realça “o investimento muito grande [feito] na qualificação das suas equipas” dos últimos anos, que resultou em “equipas apenas compostas por técnicos superiores”.

Colégios vazios

Em 2002, a instituição tinha 30 lares que acolhiam 635 crianças e jovens em perigo. Hoje tem dez residências de acolhimento, sete apartamentos de autonomia para jovens mais velhos e três respostas mais especializadas — acolhimento temporário em situações de emergência, apoio a crianças surdas e lar residencial para crianças surdas-cegas —, com capacidade para acolherem 215 crianças e jovens. Quase todos vivem em lares externos. Na grande maioria, os colégios internos compõem um património rico e imenso da Casa Pia, Instituto Público. Agora estão desaproveitados e vazios.

Nos últimos dez anos, passaram a estar muito menos crianças em acolhimento na Casa Pia, e isso acompanha a tendência nacional. De acordo com o Relatório CASA – Caracterização Anual da Situação de Acolhimento, publicado todos os anos, de cerca de 12 mil crianças e jovens, em 2006, o sistema de acolhimento passou a ter pouco mais de oito mil, em 2016.

João Martins entrou com sete anos e tudo correu mais ou menos bem até ir para a residência exterior quando já era adolescente. Foi como se o arrancassem à família, uma segunda vez.

“Os educadores eram como um pai ou uma mãe. Nunca tive nada a apontar a Pina Manique”, recorda João Martins. “Mas no lar externo, mesmo com turnos garantidos, é um grande stress. Há educadores que não querem saber, que só estão ali a cumprir o turno, não fazem aquilo com o coração. É raro uma pessoa ajudar outra a evoluir, a tornar-se um homem, uma mulher, e isso faz toda a diferença para o nosso futuro, para aprendermos ou não a fazer as escolhas certas.”

E continua: “Nós temos que confiar mais. E deixámos de confiar. Éramos como uma família. Sentíamo-nos em casa. Casa é onde se sente o amor. Fui retirado à minha família, mas desde que eu tivesse os meus colegas ao pé de mim, e os meus educadores, sentia-me em casa, sentia amor e sentia-me feliz. Nem tiveram o bom senso de fazer as mudanças mantendo as pessoas juntas. Éramos como peças de um xadrez que retiravam e metiam onde queriam, sem nos perguntarem nada."

Zero desinvestimento

A mudança das equipas nas quais os educadores de referência passaram a fazer os turnos da noite, que antes eram assegurados por assistentes de apoio residencial, afastou os educadores das crianças e jovens no seu dia-a-dia, quebrando laços e a continuidade nas idas às consultas ou às reuniões na escola para os encarregados de educação, defendem os educadores e ex-educadores contactados. A direcção e a tutela respondem que o modelo escolhido é o desejável para integrar as crianças na comunidade e criar condições para a autonomia dos jovens adultos.

“Não houve qualquer desinvestimento por parte da tutela na Casa Pia de Lisboa”, diz fonte oficial do gabinete do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva. “Antes pelo contrário. Existe uma firme convicção da relevância e qualidade da sua intervenção (...), reconhecida pelo suporte e acompanhamento prestado pelas respectivas tutelas ao longo destes anos.”

Ex-alunos e educadores, pelo seu lado, apontam muitos problemas. Dizem que passou a haver menos acompanhamento, menos disciplina, menos respeito, que o acolhimento se degradou e a autoridade dos educadores foi posta em causa. E estes estão muitas vezes sozinhos porque embora as equipas tenham crescido, muitos entram de baixa por desgaste psicológico decorrente da profissão.

“Em Pina Manique, havia mais disciplina. As regras são necessárias, mas o importante é o respeito. Sem respeito não há regras nem confiança. Havia problemas mas não eram deste género de comportamentos de revolta e desrespeito, de fugas prolongadas. Havia fugas, mas os miúdos voltavam logo, e acontecia muito menos vezes, porque as pessoas se sentiam em casa. Agora, os miúdos fogem, não vão à escola, ficam na má vida. Uma coisa leva à outra. E vão parar a centro educativo com uma medida tutelar educativa” decretada por um juiz.

Para alguns técnicos, os miúdos sempre chegaram muito fragilizados e são os educadores que agora estão mais condicionados na sua acção. Mas há também quem considere que “os miúdos chegam com muitos mais problemas psicológicos e de comportamento, e também chegam mais velhos”.

Quem tem esta posição defende que “chegam em situação de fim de linha”. “Parece que estamos a preparar os miúdos para irem para um centro educativo.”

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