Arguido dos vistos gold diz que se referia a vinho quando falou em arrebanhar

Antigo presidente do Instituto dos Registos e Notariado falou pela primeira vez em tribunal, para negar acusações e alegar que muito do que fez se destinava a “dar uma imagem acolhedora da administração pública”

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António Figueiredo, principal arguido do processo dos vistos dourados Enric Vives-Rubio

O principal arguido do caso dos vistos gold, o ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado António Figueiredo, explicou esta segunda-feira em tribunal o significado de uma das escutas mais conhecidas do processo: aquela em que foi ouvido a dizer ao telefone que queria “arrebanhar por todo o lado”.

Segundo o Ministério Público, que o acusa de 12 crimes, incluindo corrupção, tráfico de influência e branqueamento de capitais, trata-se de um forte indício do seu envolvimento em negócios ilícitos fora do país. “Mostrava uma avidez por dinheiro e propunha-se fazer todos os negócios possíveis em Angola, na perspectiva de que aquele país era uma mina”, refere o Ministério Público no despacho de acusação.

Aos juízes, o antigo dirigente deu uma justificação completamente diferente para as suas palavras: garantiu que se referia a um negócio de venda de vinhos que estava a lançar no final de 2013 juntamente com outros arguidos. “Estava a falar em tentar vender uma caixa de vinho aqui e outra ali, arrebanhando por todo o lado.”

“Eu não queria receber”

António Figueiredo não negou ter recebido 20 mil euros de uma só vez do governo angolano, por ter organizado naquele país uma conferência na área dos registos e notariado. “Eu não queria receber”, declarou. “Se não queria…”, observou-lhe o juiz que preside aos trabalhos do tribunal. “Mas receber estava de acordo com os usos e costumes de Angola”, replicou o arguido. O dinheiro estava num envelope que foi buscar a uma empresa sediada na Batalha. Doutra vez foi pago em kwanzas, embora numa quantia substancialmente inferior.

Questionado sobre a legalidade de pagamentos em dinheiro vivo, António Figueiredo invocou a burocracia angolana. “Estar a levantar-lhes problemas era estar a imiscuir-me nos assuntos daquele país”, alegou. Foi a primeira vez que falou em tribunal, apesar de o julgamento estar a decorrer há nove meses. Significado diferente daquele que lhe atribui o Ministério Público terá também um SMS que o seu amigo e ex-ministro Miguel Macedo, igualmente arguido neste processo, lhe enviou, e onde lhe diz “Sempre a facturar…”. Segundo o arguido, falavam de assuntos da vida privada numa linguagem muito deles, e não de negócios.

Já quanto a toda a ajuda que deu a vários amigos e conhecidos de nacionalidade chinesa para que conseguissem autorizações de residência em Portugal, através do programa dos vistos dourados, afirmou que o fez a título gracioso, para “dar uma imagem acolhedora da administração pública”. Foi através dele que vários processos para a obtenção de vistos abertos no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foram acelerados ou mesmo dispensados de serem instruídos com toda a documentação exigida por lei. 

Ajudar amigos? "Serviço público"

“Havia aqui uma componente de serviço público, independentemente de estar a ajudar amigos”, justificou o ex-dirigente, salientando o contributo que com isso deu para o desenvolvimento do país. 

“Era esse o conceito que eu tinha, ajudar quem precisa”, disse, acrescentando que chegou a fazer o mesmo com pessoas que não conhecia de lado nenhum. E as suas secretárias no Instituto dos Registos e Notariado já sabiam que os pedidos que ali chegavam eram para ser tratados com diligência e celeridade – apesar de não se tratar de um serviço de atendimento ao público.

O Ministério Público diz que quem precisava dos seus bons ofícios lhe pagava por eles. Depois de o ter ouvido dizer que ajudava todos os que lho pediam, o presidente do colectivo de juízes também não pareceu muito convencido da sua costela de bom samaritano. “Nem toda a gente tem acesso ao gabinete do presidente do Instituto dos Registos e Notariado”, observou o magistrado.

Um juiz proverbial

Ficou célebre o acórdão em que juízes do Tribunal da Relação de Lisboa negaram a libertação de José Sócrates quando este se encontrava em prisão preventiva alegando que “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm”. Mas há mais magistrados com gosto por provérbios. Só na sessão desta segunda-feira, o presidente do colectivo do caso dos vistos gold, Francisco Henriques, deitou mão de três.

“À mulher de César não basta ser séria”, disse a António Figueiredo enquanto este tentava justificar ter recebido de empresários angolanos pagamentos em dinheiro vivo, em vez de ser por transferência bancária. Quando o arguido lhe explicou que em Angola era mesmo assim, por causa da burocracia, voltou a invocar a sabedoria popular: “Em Roma, sê romano.” Na altura de interrogar o réu sobre a alegada manipulação num concurso da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública, Francisco Henriques – que em 2013 mandou um advogado queixar-se ao Totta – voltou a não resistir a assinalar o momento com mais uma tirada: “Uma mão lava a outra, e as duas lavam a cara.” 

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