As melhores histórias dos inquilinos de Belém cabem em 255 páginas

Um aperitivo para o artigo que se segue: em 1975, um tenente coronel com patilhas à Elvis Presley e uma pistola em cima do joelho aterrou de helicóptero no Palácio de Belém. Esta história (e outras) dava um filme. Para já, deu um livro.

Quatro Presidentes à varanda
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Quatro Presidentes à varanda Nuno Ferreira Santos
Antigos Presidentes juntaram-se em Belém em 2011
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Antigos Presidentes juntaram-se em Belém em 2011 Nuno Ferreira Santos
Palácio recebeu quatro ex-chefes de Estado
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Palácio recebeu quatro ex-chefes de Estado Nuno Ferreira Santos
A passagem de testemunho
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A passagem de testemunho Nuno Ferreira Santos

O livro não começa pela bofetada que Mário Soares levou na Marinha Grande (que afinal foi uma paulada nas costas). Nem pelo camião que Cavaco Silva conduziu aos 16 anos  - a sua primeira sensação de poder. Tão pouco tem início nos dilemas de Jorge Sampaio quanto à nomeação de Pedro Santana Lopes ou na história que Marcelo Rebelo de Sousa contou à Rainha Isabel, no Palácio de Buckingham, sobre a primeira vez que a viu ao vivo.

As 255 páginas do livro Os Presidentes que Mudaram Portugal começam com uma cena de filme. “De uniforme camuflado, óculos escuros, patilhas à Elvis Presley, um tenente-coronel do Exército faz, de helicóptero, a curta viagem entre uma unidade de Comandos e o Palácio Presidencial, onde o espera um general – e Presidente da República. Acompanha-o outro oficial, camarada de armas e amigo pessoal. O país onde isto se passa, numa manhã cinzenta de Novembro, fervilha, nesse preciso momento, no vórtice de uma tentativa de golpe de Estado em curso. O tenente- coronel exibe uma pistola Walter de 9 milímetros em cima do joelho, pouco antes de o aparelho baixar”.

A descrição prossegue por mais uns parágrafos sem dar nomes às personagens ou aos lugares. Cria suspense. Envolve. Mas aqui o espaço é curto e mais vale dizer logo ao que vamos. O tenente-coronel com patilhas à Elvis Presley e uma pistola em cima do joelho é nem mais nem menos do que o (então) futuro Presidente da República Ramalho Eanes, de 40 anos. O país é Portugal. A viagem de helicóptero acontece entre a Amadora e Belém. E a manhã cinzenta é a de 25 de Novembro de 1975.

As histórias nos detalhes

É através dos detalhes que este livro passa pelos mais de 40 anos de história dos inquilinos do Palácio de Belém. “Nunca se tinha feito, num pequeno volume, de fácil leitura, para o cidadão comum, uma história dos Presidentes eleitos. Há biografias de todos eles, em grossos volumes, muito desenvolvidas, mas não uma visão integrada de como os mandatos e as personagens se foram interligando”, explica o autor, Filipe Luís ao PÚBLICO.

Nas páginas dedicadas a Ramalho Eanes (o general que não sorria), há espaço para um dos primeiros-ministros que consigo contracenou: Francisco Sá Carneiro. E mais uma vez, são os pormenores que contam as melhores histórias. Esta envolve também Snu Abecassis, a “senhora sueca ainda casada com um português” com quem Sá Carneiro vivia maritalmente. O autor recorda o que já se sabia. “Esta situação viria a causar engulhos insuperáveis na própria relação de Sá Carneiro com o casal presidencial, em especial, Manuela Eanes, profundamente Católica, que se recusou a ‘contracenar’ com Snu em cerimónias oficiais.” Sá Carneiro insistia que Snu ocupasse o lugar relativo à sua mulher legítima o que gerou uma animosidade que viria a contribuir para o degradar das relações pessoais entre o primeiro-ministro e o Presidente.

“O livro surge da circunstância da eleição do Marcelo Rebelo de Sousa e das expectativas criadas, ao mesmo tempo que o país experimentava uma solução política inédita”, conta Filipe Luís, justificando que Belém voltava, finalmente, a ter interesse. Nomeadamente editorial.

O clique da Marinha Grande

Nem só de histórias inéditas vive a obra. No caso de Mário Soares (descrito como republicano, socialista e laico), muitas foram recuperadas por altura da sua morte, em Janeiro deste ano, e por isso estão ainda frescas na memória. Mas até nessas há surpresas. Como a da bofetada na Marinha Grande, em 1986, clima de campanha eleitoral para as presidenciais.

Depois de um banho de multidão na Nazaré, Soares regressa ao carro. E começa a descrição. “Anoitece. Soares dormita, no carro. Acorda com os gritos de elemento do PS local, que aparece de cabeça rachada e viatura com chapa amolgada. Pouco antes, nos arrabaldes da Marinha Grande, quando tentava anunciar a chegada do candidato, o homem tinha sido alvo da ira popular, orquestrada pelo PCP. E tinham-lhe chegado a roupa ao pelo. ‘Não podem continuar! Se o Mário Soares entrar na Marinha Grande, vai ser morto’”. Não foi. Mas sofreu uma agressão. “Uma bofetada, como disseram, ou uma paulada nas costas, como o próprio viria a testemunhar”. Foi “o clique da Marinha Grande”, descreve o autor, e valeu-lhe a eleição.

Na página 98, conta-se “a história que Soares não perdoa a Cavaco, que serve de alegoria para ilustrar alguma desconfiança pessoal, e não apenas política, que sempre teve pelo social-democrata”, como descreve Filipe Luís. “Numa roda e amigos, [Soares] contou certa vez que ter conhecido alguém que viajara de automóvel com Cavaco, para o Algarve, muito antes de este ter entrado na política, e que Cavaco conseguira fazer toda a viagem sem dizer uma palavra.” Um episódio que, para Soares, “definia uma personalidade, demarcava uma linha vermelha e transformava a personagem num elemento perigoso”, lê-se.

Cavaco sabe fazer relatos

Quebrando a sequência cronológica de Presidentes, a que o livro obedece, mantenhamo-nos em Cavaco Silva (o homem que não queria ser político) para lançar a história do camião de 10 toneladas, carregado de alfarroba com destino a Alverca e de sacos de figos para descarregar em Torres Novas, que após uma pausa em Ferreira do Alentejo acabou guiado pelo “terceiro passageiro, um jovem de 16 anos, alto, seco, moreno” de primeiro nome Aníbal.

Se não imaginamos Cavaco no papel de infractor, ainda menos o imaginamos a fazer uma reportagem da aproximação, durante uma campanha, de um repórter da TSF ao primeiro-ministro que se estava a recandidatar. Conta Filipe Luís que o candidato sacou o microfone da mão do jornalista João Almeida, da TSF, e começou o relato: “E agora salto por cima de uma cadeira, e passo por baixo de uma mesa, já levei um pontapé na cabeça, estou a aproximar-me do primeiro-ministro…”

Marcelo Rebelo de Sousa (ou simplesmente Marcelo, como sugere o capítulo dedicado ao actual Chefe de Estado) sucedeu a Cavaco Silva num estilo completamente distinto, mas comungando alguma da popularidade com que Cavaco foi presenteado nos primeiros tempos. Marcelo é popular sim, mas muito menos institucional e formal. E trouxe o seu emprego para a rua, onde estão os portugueses.

A bomba atómica

“Marcelo, você devia era candidatar-se a Presidente da República”. Em 2006, à saída de um estádio alemão no final de um jogo da selecção, um anónimo lançou-lhe o desafio, tratando-o pelo primeiro nome, como se tratam as pessoas por quem se tem afecto (palavra-chave na sua actual presidência). “Isso não, mas nunca se sabe”, respondeu o então comentador. Nessa altura, Cavaco levava apenas cinco meses de mandato e só dez anos depois viria a ser substituído por Marcelo, a 24 de Janeiro, numas eleições muito disputadas. “Para muitos, levar Marcelo a Belém era como dar a chave da despensa a uma criança viciada em bolachas”, descreve o autor.

Para memória futura, traga-se a este texto um traço de personalidade que está registado no final do livro e que, à luz dos últimos acontecimentos, ganha maior relevância. “Contrariando a sua aparente postura frívola na forma de fazer política, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha dado provas de que era capaz de ter jogo de rins quando estava em vista um interesse nacional maior. Foi assim quando, como líder do PSD, viabilizou, pela abstenção, três orçamentos do Estado consecutivos, submetidos à aprovação parlamentar pelo primeiro Governo (minoritário) de António Guterres, em 1997, 1998 e 1999. Traição lesa PSD? Nada disso: Marcelo percebera então que esta era a forma de garantir a entrada de Portugal na moeda única”.

Jorge Sampaio (o poder da lágrima fácil) ocupa qualquer coisa como 50 páginas do livro Os Presidentes que Mudaram Portugal. Uma das histórias recuperadas é a do dia 11 de Setembro de 2001, quando caíram as Torres Gémeas, em Nova Iorque. Conta o autor que Sampaio almoçava em Belém com Medeiros Ferreira quando o segundo avião embateu no World Trade Center. “Bem, o almoço parece estar terminado…”, terá dito o Chefe de Estado, longe de imaginar que um ano e meio depois Portugal estaria a ser anfitrião da Cimeira das Lajes, que reuniu George W. Bush, José Maria Aznar, Tony Blair e Durão Barroso, para tomar uma decisão sobre a invasão do Iraque.

A bomba atómica, no entanto, seria o próprio Jorge Sampaio a lançá-la, em finais de Novembro de 2004. “Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva”, explicou recentemente o antigo Presidente ao seu biógrafo, José Pedro Castanheira. “Ao contrário do que acontecera em Julho, e que achei que devia ser dada uma nova maioria, reconheci que era preciso uma ruptura.” E ela aconteceu, a 30 de Novembro de 2004. Sampaio convocou o Conselho de Estado e marcou eleições antecipadas. O resto já se sabe. E está no livro.

Juntar a vida, as histórias e as polémicas dos Presidentes que mudaram Portugal em 255 páginas era um desafio difícil. Filipe Luís cumpriu-o. As Edições Desassossego editaram-no. A obra é apresentada hoje, pelo politólogo António Costa Pinto.

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