“Desejamos que o Governo esteja à altura da confiança parlamentar”
Chefe de Estado insiste na necessidade de um pacto de regime para a “nova prioridade nacional” que é a floresta e recusa dizer se a relação com o primeiro-ministro mudou. Isso “não interessa aos portugueses”, diz.
Marcelo Rebelo de Sousa entra num protótipo de avião no Centro de Formação Aeronáutica dos Açores, senta-se numa cadeira da cabine e puxa uma tampa à altura da sua cabeça. A tampa salta para o outro lado, surpreendendo o Presidente da República e a comitiva que o acompanhava. Saltou-lhe a tampa, mas ele desculpa-se: “Disseram para eu puxar com força e eu puxei”.
A imagem podia ser uma metáfora sobre o que aconteceu há uma semana, quando o chefe de Estado fez a mais dura declaração ao país do seu mandato, após os incêndios que devastaram vários concelhos da zona centro e norte, com uma nuance: Marcelo sabia os efeitos que as suas palavras podiam causar e não os temeu.
Uma semana depois, cumprindo a segunda parte da visita ao arquipélago dos Açores, o Presidente parecia mais pacificado com tudo o que aconteceu na última semana. “Não há agitação politica nenhuma, a vida política nacional continua”, afirmou aos jornalistas à chegada à ilha de Santa Maria.
A apresentação pelo Governo de um plano que coloca a prevenção e combate aos incêndios e a reforma florestal como “nova prioridade política nacional” vai ao encontro do que pediu. E o “chumbo”, na véspera, da moção de censura ao Governo no Parlamento foi a “clarificação” que o Presidente da República esperava para se abrir uma “nova fase” na vida política nacional. Agora, falando por “todos os portugueses", afirma: "Desejamos que o Governo esteja à altura dessa confiança parlamentar, que é fundamental para a concretização desse desígnio nacional”.
Daqui e até ao fim do mandato – “e já falta menos de metade da legislatura”, sublinhou -, Marcelo Rebelo de Sousa quer “convergência, consenso, um pacto de regime” entre partidos e parceiros sociais e económicos para a “nova prioridade instante” resultante dos trágicos incêndios deste ano.
Na Vila do Porto, em Santa Maria, chovera até quase à chegada do Presidente. Os jornalistas queriam saber se o chefe de Estado não preferia que o Governo tivesse apresentado uma moção de confiança, mas Marcelo não quis ir por aí: “Não chovendo aqui, não vamos agora chover sobre o molhado”. Uma não resposta, tal como a seguinte, que deu à pergunta sobre se os acontecimentos da última semana tinham prejudicado a sua relação com o primeiro-ministro: “Não vou estar a comentar realidades que não interessam aos portugueses. O que interessa aos portugueses agora é o que é que vai ser definido, naquele como noutros domínios, e o que vai ser executado”.
E o que espera que venha a ser executado deve sê-lo sem preocupações com o défice, insistiu, lembrando que há da parte da União Europeia “uma compreensão no sentido de que aquilo que vier a ser exigido no âmbito desta prioridade nacional não venha a penalizar o défice”. E espera que essa “compreensão” abranja tudo, “não apenas a reconstrução de emergência, mas também reformulação dos sistemas de prevenção e combate aos fogos, assim como a política da floresta, que é uma tarefa que não é para um Governo, mas para muitos governos ao longo de décadas”. Um assunto que terá a oportunidade de conversar com mais detalhe com o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, na próxima segunda-feira, quando este alto dirigente vier a Lisboa para participar na reunião do Conselho de Estado.
O mais alto magistrado da nação ainda teve uma palavra, ainda que com pinças jurídicas, para o polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre violência doméstica. “Eu limito-me a fazer uma declaração de princípio óbvia: o Presidente da República jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição, como deve acontecer com todos os órgãos titulares do poder político, o que significa fazer cumprir esta Constituição, que entrou em vigor em 1976, e as leis derivadas desta Constituição. É essa a tarefa do Presidente e de todos os órgãos do poder político e do Estado”, disse.
Em Santa Maria, onde passou a tarde desta quarta-feira, o Presidente visitou um dos ex-libris tecnológicos da região – uma estrutura com tecnologia de ponta que integra a Rede Atlântica de Estações Geodinâmicas e Espaciais, com um radiotelescópio Very Long Baseline Interferometry de 13 metros de diâmetro que permite a recolha de dados para estudos sísmicos, de georreferenciação, navegação, vigilância de riscos naturais. Mas foi na Misericórdia local que Marcelo pôde ser Marcelo, distribuindo afectos por idosos, crianças e pessoas com deficiência com a sua benevolência de voluntário.