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“Cerca de 90% dos processos do TAD dizem respeito ao futebol”

Luís Pais Antunes Cumpridos dois anos de funcionamento, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) já não é uma entidade estranha no edifício da justiça desportiva portuguesa, com quase 120 processos analisados. O pior é a falta de pedidos de arbitragem voluntária e de mediação.

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Mário Lopes Pereira

O peso do futebol na sociedade portuguesa tem sido comprovado pelo TAD, representando quase 90% da totalidade dos processos que ali deram entrada desde 1 de Outubro de 2015. O sorteio dos árbitros é encarado como uma alternativa válida em relação às actuais nomeações, que originam alguma falta de rotatividade.

Ao final de dois anos de funcionamento, o TAD já se afirmou como uma entidade central no sistema de justiça desportiva nacional?
Já não é uma entidade estranha. Plantou alguns marcos e padrões e está num processo de afirmação dentro daquilo que era expectável em termos de tempo. Dois anos após o início de funções, a sua existência não é desconhecida e tem revelado uma capacidade de afirmação bastante significativa. O balanço é positivo.

No total, desde Outubro de 2015, foram analisados quase 100 processos pelo TAD. É um sinal de sucesso?
Foi um pouco mais se contabilizarmos processos e providências cautelares, devemos estar entre os 118 ou 120. No primeiro ano [apenas três meses], chegaram cinco ou seis processos; durante o ano de 2016, foram 31 processos e seis providências cautelares; este ano, até ao final de Setembro, contabilizávamos cerca de 73 ou 74, ou seja o dobro de todo o ano anterior. Diria que estamos em velocidade de cruzeiro, mas ainda há margem para aumentar o número de processos, sobretudo na componente da arbitragem voluntária [A esmagadora maioria dos processos são de arbitragem necessária, onde as partes têm obrigatoriamente que recorrer para o TAD, não havendo liberdade de escolha, como acontece na arbitragem ou voluntária.].

O facto de terem dado entrada no TAD apenas quatro processos de arbitragem voluntária é indicador de que alguns agentes desportivos ainda olham para o TAD com desconfiança?
Os mecanismos de resolução alternativa de litígios, de que a arbitragem é um dos principais exemplos, ainda estão a dar os primeiros passos em Portugal. Não temos uma grande tradição e vai levar o seu tempo. Tão ou mais significativo do que o número reduzido de processos de arbitragem voluntária é a total ausência de processos de mediação para o qual o tribunal é competente. Mas vamos chegar lá.

Isso surpreende-o?
Confesso que estou desiludido. Explica-se por um certo atavismo e nós não temos grande tradição de mediação como têm os países nórdicos, por exemplo.

Também não existem processos de arbitragem voluntária envolvendo questões laborais. Parecem até ter ressurgido as extintas comissões arbitrais paritárias (CAP), nomeadamente aquela que ligava a Liga e o Sindicato de Jogadores…
Não desconhecemos essa situação e não nos é indiferente. Mas quero sublinhar que o TAD não é um agente político, nem um agente desportivo, nem um agente legislativo a quem deva competir pronunciamentos públicos sobre essa matéria. Temos uma solução legislativa sobre a questão da competência para os conflitos laborais, por exemplo, que suscitou, bem ou mal (não vou fazer juízos de valor quanto a isso), problemas de interpretação. Mas já temos algumas situações de arbitragem laboral, duas ou três. Mas o próprio contrato colectivo entre o Sindicato e a Liga, no caso do futebol, optou por uma solução distinta da anterior, em que atribuía à CAP a competência para a desvinculação desportiva e outras matérias da competência do TAD… A verdade é que há questões de interpretação jurídica que não são óbvias, mas sobre as quais os tribunais, incluindo o TAD, serão chamados a pronunciar-se.

Esta situação pode também estar relacionada com os custos da arbitragem voluntária no TAD, que tem sido alvo de várias críticas, por serem considerados excessivos, superiores aos tribunais administrativos ou tribunais de trabalho, e colocarem em causa o acesso à justiça desportiva?
Não posso excluir à partida que a questão das custas tenham algum impacto. Mas tenho muitas dúvidas que essa seja a verdadeira razão. Não me parece que seja uma questão de custos e é um erro dizer que a questão financeira coloque qualquer problema no acesso à justiça, porque há sempre a alternativa do apoio judiciário. Menos de 10% dos processos beneficiaram desse apoio. São sete ou oito casos. Em alguns casos, em que foi concedido, implicou uma total isenção de custas. Admito que a justiça é muitas vezes cara, em termos gerais, mas aqui no TAD só pode ser cara para quem perde, porque quem ganha não tem custos e recebe de volta o que já pagou, independentemente de ter ou não apoio judiciário. No sistema da justiça estadual, em geral, a factura é dividida por todos os contribuintes e, no limite, gasta-se mais. Agora, devo lembrar que o modelo que nós temos é aquele que o legislador entendeu ser o mais adequado para o financiamento/funcionamento da justiça desportiva. O que é mais caro é a parte correspondente aos honorários dos próprios árbitros. Poderá haver outras alternativas, caso haja um financiamento do Orçamento de Estado.

A manutenção, quase nos mesmos termos em que acontecia anteriormente com os Conselhos de Justiça das federações, de as partes terem acesso aos tribunais estatais não veio deixar tudo como estava, ao contrário do se pretendia com o novo modelo que levou à criação do TAD?
Objectivamente, retirou-se peso aos tribunais estatais em processos relacionados com desporto e acho que, com o tempo, se vai retirar mais. Era expectável que numa primeira fase se verificassem recursos para o Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS] para procurar estabilizar a jurisprudência e para testar a bondade das decisões do TAD do ponto de vista jurídico. A partir do momento em que a jurisprudência se uniformize, o interesse objectivo em recorrer começa a ser menor. Haverá sempre quem o faça, mas, mesmo agora, estamos a falar de uma margem de recursos que não é muito significativa.

Não se conhecem recursos para a Câmara de Recursos (CR) do próximo TAD, criada para o efeito. Estranha?
Essa pergunta terá de ser colocada às partes. Não estranho por uma razão óbvia: na sequência da alteração da lei que regula o TAD, na sequência dos chumbos do Tribunal Constitucional [o TC decidiu que o modelo original violava a Constituição por impedir eventuais recursos para os tribunais estatais, em sede de arbitragem necessária], só pode haver recurso para a CR se ambas as partes envolvidas prescindirem da possibilidade de recurso para os tribunais estatais. O que acontece é que o interesse das partes tende a ser contraditório e há sempre uma que tem vantagem em que o processo se prolongue mais tempo e outra que pretende mais rapidez.

Existe algum tipo de articulação ou cooperação entre o TAD e o TCAS?
Articulação de natureza institucional não. Mas não tem que haver.

Numa das decisões do TAD que foi anulada [o arquivamento da queixa do Benfica contra Bruno de Carvalho no caso dos vouchers que o clube da Luz ofereceria aos árbitros], o TCAS foi particularmente duro nos argumentos, qualificando-a de “deficiente e obscura quanto à sua fundamentação”. Não são críticas pesadas?
Sim, é efectivamente pesado. A decisão do TAD foi declarada nula e inexistente. Consideraram que o caso [que tinha sido arquivado] não estava ainda resolvido, mas já houve uma segunda decisão do TAD nesse processo e houve um novo recurso para o TCAS, que está neste momento pendente.

Foi um puxão de orelhas?
Não considero um puxão de orelhas. É relativamente normal, não vou dizer corrente, os tribunais superiores criticarem decisões de tribunais de primeira instância quando assim o entendem. Existem em todas as hierarquias. Agora, o facto de o TCAS já ter confirmado integralmente outras decisões do TAD nunca foi notícia. Esta que refere foi, de facto, objecto de uma decisão bastante negativa e em termos que são tudo menos simpáticos. Não tenho conhecimento de mais nenhuma decisão da mesma natureza.

A lei do TAD ainda tem insuficiências? É urgente ser revista?
Ela já foi revista mesmo antes de o TAD existir [face aos chumbos do TC]. A lei tem algumas insuficiências, algumas delas abundantemente comentadas e discutidas como a questão da publicitação dos processos [que é imposta pela Constituição, apesar de a lei do TAD permitir a não publicitação no caso de se verificar aposição de alguma das partes], o regime das providências cautelares, algum excesso de formalismos que tornam o processo mais pesado… Acho que será útil corrigir, apesar de não ser defensor da hiperactividade legislativa e da necessidade de estar constantemente a apertar parafusos, e, por isso, acho que se deve dar algum tempo para a aplicação da actual lei.

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O futebol continua a representar a esmagadora maioria dos processos no TAD?
Estava à espera que isso acontecesse. É verdade que o futebol tem um peso desmesurado. É verdade que aproximadamente 90% dos nossos mais de 100 processos neste período de dois anos dizem respeito ao futebol e ao futsal. Mas esse peso também se reflecte na comunicação social e nas discussões. É um reflexo da sociedade. Mas já passaram aqui outros processos de um número significativo de modalidades. Agora há, sem dúvida, uma maior litigiosidade no futebol e futsal do que em outros desportos.

Ao analisar os processos tratados pelo TAD é notório que existe uma nítida falta de rotatividade dos árbitros escolhidos pelas partes e mesmo em relação aos designados árbitros presidentes. Que conclusões se podem tirar?
Uma das observações críticas de que temos sido alvo é haver um determinado afunilamento na escolha dos árbitros. Mas nós encontramos esses fenómenos também em sistemas de listas abertas de árbitros. A escolha recai mais vezes nos árbitros que são mais conhecidos ou porque as partes entendem que são os mais capacitados ou qualificados.

Os cinco árbitros mais nomeados do painel de 40 (39, já que o presidente do TAD está excluído pelo cargo que ocupa) foram chamados 58 vezes. Ou seja, estiveram envolvidos em 52,72% dos processos…
A conta não pode ser feita assim, já que cada processo pode dar lugar a três/quatro nomeações (caso haja contra-interessados). Mas confirmo que participaram nos processos um total de 26 árbitros. Mas isso não é nada estranho, já que as partes são livres de escolher os árbitros que entenderem.

E os árbitros são livres de escolher os árbitros-presidentes que entendam. Os quatro mais nomeados foram chamados em metade dos casos…
Sim, são livres de o fazer, tendo em conta os impedimentos legais ou a existência de conflitos, etc. O que se tem verificado é que mesmo as entidades que são grandes ‘clientes’ do TAD, como por exemplo a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), vão variando nas escolhas. Na questão da escolha dos árbitros-presidentes, podemos ter mecanismos diferentes. Em vez de serem escolhidos pelos árbitros nomeados pelas partes, podem ser sorteados ou fazer parte de uma lista fechada. Não tenho ideias pré-concebidas sobre essa matéria.

A FPF designou o árbitro Sérgio Castanheira em 12 processos. É normal?
Admito que sim, mas também designou outros em outros processos. Não há árbitros cativos de determinadas entidades. Não há uma exclusividade, mas pode existir uma preferência que eu acho compreensível. Apesar de tudo, tem havido alguma rotatividade. E há aqui outro aspecto importante: dos 13 árbitros que nunca foram nomeados em nenhum processo, sete não são juristas e eu percebo que as partes fujam um pouco de escolher não juristas porque estamos a falar de aplicar Direito. E depois não há nenhuma regra de quotas mínimas para a nomeação dos árbitros.

O projecto inicial do PS para a constituição do TAD, que acabou por cair, sugeria o sorteio. Não seria uma solução mais transparente e eficaz?
Não vejo nenhum inconveniente em que se altere este aspecto se o legislador assim o decidir. No domínio da arbitragem, a indicação do árbitro pela parte é a regra, mas há vários sistemas em que a escolha dos árbitros, em lista fechada, é feita por sorteio. Tem vantagens e inconvenientes.

O árbitro José Ricardo Gonçalves, indicado pela Liga para o TAD, foi nomeado pelo presidente do TAD para dar um parecer para a própria Liga sobre a reorganização dos quadros competitivos, tendo em vista uma futura reintegração do Gil Vicente na I Liga. É uma situação natural?
Não vejo problema nenhum. Estamos a falar da emissão de um parecer que não é vinculativo [apesar de ter proposto uma norma que está agora incluída no regulamento da Liga]. Não podemos confundir aquilo que é o exercício da função jurisdicional com o serviço de consulta do TAD.

Foi também nomeado árbitro-presidente em casos que teve a Liga como contra-interessada…
Se isso aconteceu foi porque houve três árbitros nomeados pelas partes que o escolheram. Há um princípio de liberdade na escolha do árbitro-presidente e o conselho directivo do TAD não tem qualquer direito de intromissão nessas escolhas.

… e não tem currículo publicado no site do TAD, tal como outros oito árbitros. É desleixo?
Não há nenhuma obrigação legal para a publicação destes currículos. Mas admito que possa ter havido alguma falta de atenção e acho desejável que todos tenham os seus currículos disponibilizados na página oficial do TAD. Nós temos os currículos, mas precisamos de autorização para os publicar.

Em relação à celeridade dos processos, que era um dos grandes argumentos para a defesa da existência do TAD [a par da especialização e uniformização], verificam-se, em alguns casos, decisões que demoraram mais de 200 dias. É demasiado tempo?
Nas actuais circunstâncias o TAD decide dentro de prazos perfeitamente razoáveis. Estamos com uma média de duração dos processos, desde a data de entrada à data de saída, de sensivelmente três meses. É um bom menos. Mas admito que há casos que superam este prazo por razões de natureza burocrática ou administrativa. Em 2017, conseguimos reduzir o prazo médio em relação ao ano anterior.

O TAD já assegurou o seu autofinanciamento?
Ainda não. A expectativa era que o TAD estaria em condições de se aproximar da auto-suficiência ao fim de um período de três/quatro anos completo. Em condições normais, se atingirmos um determinado nível processual, será quase auto-suficiente.

Qual é a comparticipação do Estado?
O IPDJ [Instituto Português do Desporto e Juventude] atribui uma verba específica, que está englobada no contrato-programa com o Comité Olímpico, embora como afectação para o TAD.

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Qual o valor?
Está na casa dos 80 mil euros anuais, que representa um pouco menos de metade do orçamento de funcionamento do TAD, que anda na casa dos 180 mil euros. De resto, são as receitas próprias do tribunal que cobrem o diferencial. No ano passado foram suficientes e este ano também são.

As contas do TAD são públicas?
Não, mas não tenho problema nenhum que sejam, apesar de não haver nenhuma imposição legal que obrigue à publicidade das contas. Temos uma gestão um bocadinho espartana.

Os honorários dos árbitros estão incluídos neste orçamento?
Não estão incluídos.

Como funciona o sistema remuneratório dos árbitros?
Só ganham quando são chamados e só recebem à medida que as partes vão pagando. Os honorários são estabelecidos em função do valor do processo, que determina ainda a taxa de justiça, dentro de um percentual de 10% para receitas administrativas. Essa é a receita do TAD. Nos processos normais, de valor de 30 mil euros e um cêntimo, a taxa de justiça é de 900 euros, paga por cada uma das partes. Mas quem irá pagar o total dos 1800 euros é, no limite, quem perde o processo.

Há atrasos nos pagamentos?
Há alguns atrasos e há algumas execuções em curso por falta de pagamento das custas legais. São alguns, mas não muitos. Em alguns casos, temos aceitado o pagamento em suaves prestações. Na maioria dos casos, são cumpridos. Mas avançamos para execuções se o incumprimento se prolonga no tempo e sobretudo se lemos nos jornais que uma das partes, que diz não ter dinheiro para pagar, anda a contratar jogadores.

O poder judicial tem alguma resistência aos tribunais arbitrais?
Cada vez menos. Historicamente havia uma clara divisão entre a justiça estadual e a resolução alternativa de litígios, mas cada vez menos hoje em dia. Mas tanto há grandes defensores deste modelo, como há quem tenha uma visão bastante mais restritiva.

Por quem foi indicado para ser árbitro no TAD?
Pela Federação Portuguesa de Futebol.

Foi a sua experiência na arbitragem que o levou a ser indicado, tendo em conta que não tem um passado conhecido em matéria de desporto?
Diria que um bocado de cada. A minha experiência na arbitragem certamente que sim, mas também fiz algumas coisas bastante relevantes na área do Direito Desportivo e não apenas em Portugal, sobre as quais não me posso pronunciar. Seria uma violação deontológica grave divulgar qual foi a federação ou o clube para quem trabalhei.

Está disponível para mais um mandato na presidência do TAD quando encerrar este triénio, em Outubro de 2018?
Não faço ideia. É ainda prematuro falar nisso, mas não fecho essa porta. Será uma avaliação que vou ter de fazer em Março ou Abril do próximo ano.

Tem clube?
Tenho.

É segredo?
Não é segredo, mas a maioria das pessoas sabe bem qual é. Sou um adepto visível, mas completamente low profile nas minhas manifestações públicas. Frequento estádios de todas as cores (…) FC Porto [risos], mas acho que isso é um facto público e notório.

Tem opinião em relação à realização de jogos em dia de eleições?
Acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

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