Trump reafirma a opção nacionalista e ameaça arrasar a Coreia do Norte
É um discurso que não ficará na História e cuja originalidade reside numa ameaça apocalíptica que nenhum Presidente americano até agora fizera. No conjunto, reflecte uma visão de mundo nacionalista em que todos lutam contra todos.
Discursando pela primeira vez na Assembleia Geral da ONU, perante os líderes mundiais e uma audiência de milhões de pessoas, o Presidente Donald Trump admitiu, de forma inédita, destruir a Coreia do Norte se ela ameaçar os Estados Unidos ou os seus aliados. Foi a parte mais sonora do discurso e que imediatamente ocupou as manchetes das edições online da imprensa mundial. Mas não a mais relevante. Esta diz respeito à reafirmação da palavra de ordem “America First”, a primazia dos interesses nacionais americanos, convidando os ouros países a seguirem o exemplo.
Trump traçou o quadro de um mundo partido entre o bem e o mal: por um lado, há “grandes avanços na ciência, na tecnologia e na medicina, que estão a curar doenças e a resolver problemas que as velhas gerações julgavam ser impossível de resolver”; por outro lado, “terroristas e extremistas uniram forças e espalharam-se por todas as regiões do planeta, com o apoio de “regimes desonestos presentes nesta sala, que não só apoiam o terrorismo como também ameaçam outras nações e os seus próprios povos com as mais destrutivas armas que a humanidade conhece”.
Para salvar o mundo de um futuro marcado pela violência e pela guerra, a visão de Trump não passa pela política que tem sido seguida pelos Estados Unidos nas últimas décadas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial — não disse que os Estados Unidos querem ver mais democracias no mundo; apenas disse que todos devem promover a prosperidade dos seus povos e a paz fora de portas, numa defesa da ideia de nações soberanas e fortes.
Na América, prosseguiu Trump, “não queremos impor o nosso modo de vida a ninguém, preferimos brilhar como um exemplo para que todos possam ver”. Também “o sucesso da ONU depende da força independente dos seus membros”.
O Rocket Man
E o que é que está a impedir o caminho em direcção a um mundo de paz e prosperidade? Em poucas palavras, a Coreia do Norte e o Irão; em mais palavras, a Coreia do Norte, o Irão, a Venezuela, o socialismo e a “burocracia” das Nações Unidas.
O Presidente começou por ameaçar Kim Jong-un e o regime norte-coreano: “Ninguém tem mostrado mais desprezo pelas outras nações e pelo bem-estar do seu próprio povo do que o regime depravado da Coreia do Norte” e “nenhuma nação da Terra tem interesse em ver este bando de criminosos armar-se com armas nucleares e mísseis”.
E se a Coreia do Norte não perceber que “a desnuclearização é o seu único futuro aceitável”, então os Estados Unidos vão agir: “Não teremos outra alternativa que não seja destruir totalmente a Coreia do Norte. O Rocket Man [Kim Jong-un] está numa missão suicida para o seu próprio regime.”
Irão
Depois de pedir aos países-membros da ONU que isolem a Coreia do Norte, o Presidente dos Estados Unidos virou-se para o Irão. Denunciou o acordo sobre o programa nuclear iraniano, alcançado durante a era de Barack Obama, como “uma vergonha para os Estados Unidos”. Colocou em cima da mesa uma série de exigências americanas: “Chegou a hora de o regime [iraniano] libertar todos os americanos e cidadãos de outros países que foram detidos injustamente. Acima de tudo, o Irão tem de deixar de apoiar terroristas, começar a servir o seu povo e a respeitar os direitos de soberania dos seus vizinhos”, disse Trump, enquanto o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ia dizendo que sim com a cabeça. Lançou, por fim, um apelo aos iranianos para que se revoltem contra o regime: “Os regimes opressivos não podem durar para sempre, e chegará o dia em que o povo terá de enfrentar uma escolha.”
Mas o momento mais peculiar do discurso ficou reservado para a parte em que o Presidente norte-americano falou sobre a Venezuela. Pelo meio das acusações de opressão e de “roubo da soberania do povo” lançadas contra o Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, Trump proferiu uma frase que poderia ficar na História dos discursos nas Nações Unidas: “O problema na Venezuela não é o facto de o socialismo ter sido implementado de forma errada; o problema é o socialismo ter sido implementado de forma fiel.”
A tecla patriótica
As últimas palavras foram todas reservadas para um apelo global ao resgate de um sentimento patriótico — quase como se Trump estivesse num comício de campanha, mas com mais requinte na escolha das palavras: “É esse o desejo ancestral de cada povo, o desejo mais profundo de cada alma sagrada. Deixemos, então, que seja esta a nossa missão, e que seja esta a nossa mensagem para o mundo. Vamos lutar em conjunto, vamos sacrificar-nos em conjunto, e vamos defender em conjunto a paz, a liberdade, a justiça, a família, a humanidade e o todo-poderoso Deus que nos criou a todos”, disse o Presidente norte-americano perante os líderes dos países-membros da ONU, terminando como se estivesse no Congresso norte-americano: “Obrigado, Deus vos abençoe, Deus abençoe as nações do mundo e Deus abençoe os Estados Unidos da América.”
Breve balanço
O discurso não foi original mas será lido em várias regiões do mundo como “incendiário”. Há uma razão: “É a primeira vez que o Presidente dos Estados Unidos ameaça riscar do mapa um país de 25 milhões de habitantes”, anotou no Washington Post o analista Aaron Blake.
Não se tratou de mais um tweet mas de um texto longamente elaborado. A ameaça pode encobrir a falta de “boas opções” para Trump. Ou, por outro lado, dar uma garantia a aliados como o Japão ou a Coreia do Sul. Resta saber se estes apreciarão este tipo de ameaça, em tom apocalíptico.
Quanto à ruptura do acordo com Irão, o Presidente francês, Emmanuel Macron, qualificou-a de “irresponsável”. Na véspera dissera que tal significaria “abrir uma caixa de Pandora”.
A visão do mundo de Trump foi há dias resumida pelo seu conselheiro de Segurança Nacional, H.R McMaster: o planeta não é uma “comunidade global” mas uma arena em que existem nações, actores não-governamentais e negócios, todos em competição por vantagens”. É um fórum em que impera “a força militar, política, económica e moral”.
Nenhum dos antecessores de Trump teve uma visão idílica da comunidade internacional e nenhum desleixou os interesses americanos, mesmo quando Obama reconheceu o fim da América enquanto “potência solitária”. Aquilo com que Trump rompe é com a tentativa de criar as bases de uma “ordem internacional” baseada não apenas na potência americana mas em pilares como as alianças e os tratados.
Este discurso “não ficará na História, será esquecido como tantos outros feitos na ONU”, sentenciou no La Repubblica o jornalista Vittorio Zucconi.